Me preparava para assistir mais um documentário sobre o rei do Futebol, dentre os inúmeros que já assisti, quando reparei que nos primeiros 20 minutos já tinha chorado duas vezes ao lado de minha filha caçula.
Não sabia se chorava por ela estar emocionada ou porque realmente a construção histórica do documentário “Pelé”, na Netflix, me transportou para um lugar muito distante e cheio de cores, lágrimas e paixões políticas.
A história de Pelé é a síntese de um país possível e democrático, onde se poderia sonhar que um negro de família humilde poderia se tornar um astro pop de incomparável relevo internacional.
O Brasil de JK é descoberto, Pelé e suas genialidades, somadas aos mágicos companheiros do Santos, fazem do Futebol o meio mais eficiente e diplomático que qualquer outro instrumento de propaganda nacionalista.
Até 1964 esse era o roteiro: o time do Brasil já era bicampeão mundial e o Santos também. Tudo sob a batuta do gênio.
Mas o caldo começou a entornar com o golpe militar. O estado de exceção reprime e limita os direitos democráticos, mas o futebol de Pelé continua encantador e parecendo viver em uma redoma de vidro.
O filme de David Tryhorn & Ben Nicholas faz um bom contraponto com a alienação e/ou condescendência de Sua Majestade com o regime militar.
Pelé guarda em si todas as contradições de sua posição apaziguadora e neutralidade. Para alguns um pelego do general Médici, para outros um gênio da raça omisso politicamente, infelizmente.
Ele chegou a indicar ao STJ um advogado amigo para o ditador, que topou desde que o jogador fosse para o Flamengo.
O filme é recheado de arquivos de época na imprensa internacional e depoimentos de Gilberto Gil, Juca Kfouri, José Trajano e João Saldanha — grande desafeto do regime, um comunista declarado que seria substituído por Zagallo no comando técnico da Seleção dois meses antes da Copa no México.
A fita gira em torno desse mundial, que representa a redenção de Pelé após o fiasco de 1966 na Inglaterra.
Este documentário realmente me transportou para aquele 21 de junho de 1970, dia da final contra a Itália.
Enquanto eu criança, recém-saída dos cueiros, me preparava para ver aquela bagunça na frente da TV, que mostrava muita alegria, papéis picados e festa no estádio, meus familiares gritavam, na rua, as alegrias do tricampeonato e palavras de ordem contra a ditadura militar ecoavam na vizinhança.
As lágrimas voltaram a descer nesse turbilhão de cores e recordações.
Obrigado, Pelé. Apesar de você.