O espião secreto Antônio Pinto, também conhecido como Carlos Azambuja ou Doutor Pirilo, dedicou seus últimos anos à redação de livros. Lançou “A Hidra Vermelha” e “O Araguaia Sem Máscara”. Nessas obras, seguiu o conselho do Doutor Fábio, seu colega do Centro de Informações do Exército (CIE), sobre a repressão política durante o regime militar: “Reconhecemos que há muitas coisas que não podem ser reveladas. No entanto, sabemos que há muitas outras que podem e devem ser compartilhadas”.
Muito do que Pirilo optou por não abordar em suas obras permanece oculto. Estes livros representam o trabalho de um militar convencido de que estava do “lado certo da história”, defendendo o uso de todos os métodos contra o que era chamado de “terrorismo”. No entanto, ele estava ciente de que sob o rótulo de “terrorismo”, muitos incluíam parte da oposição à ditadura, que havia rejeitado a luta armada. Era o radicalismo daqueles oficiais que aspiravam a “purificar o terreno”.
Em 2015, Pinto se prontificou a responder perguntas e compartilhar seu conhecimento. Esclareceu dúvidas sobre o funcionamento do Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA) e revelou identidades de agentes e informantes. Geralmente, oferecia apenas indícios, como se estivesse testando a capacidade do interlocutor de investigar os fatos. No entanto, sempre evitava revelar uma coisa: sua verdadeira identidade.
Quase um ano de pesquisa foi necessário para descobrir que por trás do pseudônimo Carlos I. S. Azambuja estava o capitão Antônio Pinto. Antes de ingressar na comunidade de informações, ele servira na Aeronáutica, na Escola da Aeronáutica e nos gabinetes dos ministros Eduardo Gomes e Márcio de Souza e Mello. Sua vida tornou-se inseparável da comunidade de informações após uma estadia em Fort Gullick, no Panamá. Ele foi escolhido de última hora para substituir um dos seis oficiais designados para o curso de contrainformações. Ao grupo se juntou o coronel-aviador João Paulo Moreira Burnier, que na época era adido militar no país e posteriormente se tornaria o responsável pela criação do serviço secreto da Aeronáutica. Isso ocorreu em agosto de 1967.
Durante o curso em Forte Gullick, Pinto recebeu instruções de interrogatório de um capitão americano veterano da guerra do Vietnã. Foi ensinado a sempre manter uma posição de superioridade em relação ao interrogado e foi fotografado durante o curso – imagem que ele mesmo publicou, com uma anotação feita à mão, informando que seu instrutor, codinome McCarthy, havia retornado ao Sudeste Asiático, onde morreu em combate.
Pinto também recebeu instruções sobre contraguerrilha em meio a um calor intenso. L.W.B.G., conhecido como capitão Lúcio, esteve no Panamá um ano depois. “Não nos ensinaram a torturar; nos ensinaram a fazer perguntas. Nunca faça uma pergunta que possa ser respondida com sim ou não. Faça perguntas que obriguem a pessoa a falar mais um pouco.” Quando L.W.B.G. retornou, foi designado chefe da Divisão de Contrainformações do CISA, criado em 1968, e permaneceu lá por quase dez anos.
Assim como L.W.B.G., Pinto contava com a confiança de Burnier. Ao deixar o CISA em 29 de maio de 1970, o já brigadeiro Burnier registrou um elogio em sua ficha: “Esse oficial demonstrou abnegação, altruísmo, amor e dedicação ao trabalho militar, capacidade e competência profissional acima das médias normais, com noites mal dormidas e horas extras de trabalho”.
Pinto reconhecia a prática de tortura no CISA, mas afirmava não ser “partidário desse método”. Para comprovar isso, entregou ao Estadão um documento singular: datado de 3 de maio de 1969, a Parte n.º 8 foi endereçada ao “Sr. Chefe do Núcleo do Serviço de Informações de Segurança da Aeronáutica”, o brigadeiro Burnier, amigo de Pinto. O documento relatava:
“Quero informar a V. Exma que, de acordo com o recorte de jornal anexo, tomei conhecimento do suicídio do ex-sargento da FAB João Lucas Alves, dispensado pela Revolução de 1964; de acordo com o mesmo recorte, o corpo do ex-sargento Lucas Alves apresentava vários ferimentos e ‘arrancamento de unhas dos dedos das mãos’.”
No segundo item da Parte, Pinto relatou que tentou obter, por meio dos canais apropriados, uma cópia do exame de corpo de delito realizado no cadáver “com o objetivo exclusivo de desmentir mais uma notícia falsa divulgada pela imprensa, com o intuito de prejudicar a imagem da Revolução perante a opinião pública”. É nesse ponto que o documento revela sua natureza sigilosa.
“No entanto, ao ter acesso ao exame de corpo de delito, fica comprovado sem dúvida que o ex-sargento Lucas Alves, detido por participar de assaltos a bancos em apoio ao grupo (Carlos) Marighella, foi brutalmente espancado por indivíduos que desrespeitam os ideais da Revolução e que (…) satisfazem seus instintos animalescos, violando o princípio mais fundamental, a dignidade humana. Portanto, solicito as devidas providências a V. Exma, a fim de que os arrancadores de unha sejam punidos”.
A singularidade desse documento de Pinto é a admissão da tortura em um relatório de um órgão de informação militar e o pedido de punição dos culpados. Não apenas isso. O documento contém três verdades e duas imposturas. A primeira verdade é que Antônio Pinto estava profundamente comprometido com o governo dos generais. A segunda é que Alves aderiu à luta armada contra a ditadura.
Em julho de 1968, ele e dois camaradas do Comandos de Libertação Nacional (Colina) planejaram assassinar um aluno da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, o oficial do exército boliviano Gary Prado, envolvido, um ano antes, na morte de Ernesto Che Guevara. Porém, ao invés de executar o boliviano, o trio acabou com a vida do major alemão Edward Ernest Tito Otto Maximilian von Westernhagen, outro aluno da instituição.
Alves acabou capturado um ano mais tarde, em Belo Horizonte, e levado à Delegacia de Furtos e Roubos. Aqui está a terceira verdade revelada por Pirilo: o ex-sargento foi submetido a torturas extremas na delegacia, conhecida como “O Inferno da Floresta”.
Surge então a primeira falsidade: Alves não se suicidou, mas foi vítima de tortura. E, por último, Pinto estava ciente de que nada seria investigado – como de fato não foi – e nem mesmo discordava dos métodos ilegais; apenas sentiu-se compelido a documentar o que descobrira ao enviar as informações ao superior, dissociando as Forças Armadas da crueldade da polícia.
Ele não seria o único. Tal prática se tornaria comum mais tarde entre os militares: culpabilizar os “tiras” e os delegados, como Sérgio Paranhos Fleury, por todos os abusos e violências do regime. E mesmo Fleury – assim como os torturadores de Minas – jamais foi responsabilizado pelo que fez naquele período.
As operações do Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA) eram centralizadas no Rio. No início dos anos 1970, tinham como líder o tenente-coronel Fernando Muniz. Segundo Pirilo, sua autonomia era “absoluta”. A Seção de Operações contava com pouco mais de uma dezena de indivíduos, enquanto a área de Análise era composta por cinco oficiais e cinco sargentos. Todo o aparato da Agência Rio era comandado pelo coronel Renato Pinho Bittencourt.
Durante os anos da ditadura, houve algumas exceções a esse esquema, onde tais operações foram conduzidas pela filial do CISA em Brasília. Um exemplo significativo foi o caso da insurgência no Araguaia, quando o CISA colaborou em parte das ações do Exército para eliminar os militantes do PCdoB. O brigadeiro Newton Vassalo, então líder do Centro, respaldou as atividades do CIE, enviando quatro agentes à região, além de fornecer aviões de transporte e quatro helicópteros.
O chefe da Seção de Operações do CISA em Brasília, o coronel Jonas Alves Correa, esteve presente na área para informar ao brigadeiro o que estava acontecendo. Após o fim da insurgência, o órgão ainda auxiliou o Exército no transporte dos corpos dos prisioneiros para serem incinerados na Serra das Andorinhas, no sul do Pará. Era a forma dos militares eliminarem os vestígios do massacre. Pinto estava familiarizado com todas essas narrativas.