Por que o padre jesuíta Bergoglio não poderia ser o cardeal dos anos 2000 e o Papa Francisco de hoje? Como alguém que foi próximo do almirante Massera (1925-2010) hoje pode ser de Evo Morales?
Por que alguém que estivesse na Argentina nos anos 1970, e depois se ausentasse do planeta e só voltasse agora, se assustaria, como escreve Sylvia Colombo num artigo na Folha?
A resposta é: porque pode.
Ao comentar o filme “Dois Papas”, do diretor Fernando Meirelles, a jornalista acusa uma certa indústria cultural de passar o pano para o que considera “o passado nebuloso” do pontífice.
“Isso por quê? Ora, o papa é pop. Agrada até, e principalmente, a esquerda progressista”, argumenta.
“Então, como não ficar com uma versão um pouco mais simpática mais simpática dele, mesmo em episódios passados em que sua atuação foi, no mínimo, vergonhosa? Polêmico, pois o papa é um sucesso, uma figura carismática e vista como transformadora da Igreja.”
Da mesma forma que um gigante como dom Helder Câmara, o arcebispo de Recife e Olinda, conhecido por sua militância integralista nos anos 1930, se tornou um dos maiores críticos da ditadura militar instalada no Brasil, em 1964, e um lutador incansável e destemido pelos direitos humanos no País.
Ter tido contatos com o almirante Emilio Massera não faz do papa Francisco um cúmplice da Junta Militar que assumiu o governo argentino em 1976, da mesma forma que o diálogo de dom Paulo Evaristo Arns com o general Golbery do Couto e Silva não o transformou num colaborador da ditadura.
As reuniões que dom Paulo manteve com Golbery, sempre denunciando as barbaridades do regime, não o transformaram em “próximo” do general, como maldosamente é sugerido em relação ao Papa e Massera.
Diz Sylvia Colombo, Bergoglio não foi dos piores membros de uma Igreja que foi conivente e apoiou um regime que desapareceu com mais de 20 mil pessoas _inclusive com uma grande amiga dele, como o filme, de fato, retrata,, mas também não foi dos mais batalhadores.
Precisamos, aqui, instalar um “colombômetro”, capaz de medir precisamente qual o nível ideal de oposição à ditadura argentina, já que ela, embora a reconheça que o papa não foi um dos piores membros, de uma Igreja que, institucionalmente alinhou-se com Massera e seus pares, também não foi dos mais ativos.
Vale uma nova comparação com o caso brasileiro. Dentre todos os opositores eclesiásticos à ditadura, Dom Paulo foi, sem dúvida, o mais combativo.
Mas não foi o único: mesmo personagens como dom Eugênio Salles, o cardeal do Rio de Janeiro, que por seu estilo moderado e conciliador chegou a ser apontado como conivente com o regime, pelos mais apressados, desempenhou um papel importante no apoio aos prisioneiros políticos, aos quais visitava nas prisões, e aos perseguidos.
Não apenas aos brasileiros.
Sabe-se, hoje, que dom Eugênio chegou a montar uma rede de abrigos em sua diocese. Como mostrou uma série de reportagens do jornalista José Casado, de O Globo, em março de 2008, uma das atuações de maior destaque da trajetória de dom Eugenio Sales foi quando, de maneira silenciosa, abrigou no Rio mais de quatro mil pessoas perseguidas pelos regimes militares do Cone Sul, entre 1976 e 1982.
A maioria vinha da Argentina, mas havia também chilenos, uruguaios e paraguaios.
Conhecido por seu bom relacionamento com os militares, em particular com o ministro do Exército de então, o general linha-dura Sylvio Frota, Dom Eugênio tratou de informar-lhe do que estava fazendo.
— Chamei o Frota no telefone vermelho (…) e falei: “Frota, se você receber comunicação de que comunistas estão abrigados no Palácio São Joaquim, de que estou protegendo comunistas, saiba que é verdade, eu sou o responsável. Ponto final — recordou em entrevista a Casado.
Diferentemente de Dom Paulo, que juntamente com o rabino Henry Sobel e com o pastor James Wright desafiou abertamente o regime, ao celebrar um culto ecumênico em protesto pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzong, no Doi-Codi, Dom Eugênio agia nos bastidores.
Mas não titubeava em contrariar os militares, quando necessário. Numa ocasião, por exemplo, dom Eugenio deixou embaraçado o general Abdon Sena, que lhe pediu uma missa pelo aniversário do AI-5.
— Vocês que estão satisfeitos com o AI-5 podem agradecer a Deus, mas não por meu intermédio — respondeu.
Qual seria a nota do conciliador Dom Eugênio, no “colombômetro” ?
Em seu artigo, Sylvia Colombo atribui a ao papa Francisco, a responsabilidade pela prisão dos jesuítas Franz Jalics e Orlando Yorio, que atuavam ativamente nas villas miséria, as favelas de Buenos Aires.
Sua fonte principal é o escritor Horacio Verbiski, um ex-guerrilheiro do grupo Montoneros, que o acusa de ter denunciado os padres à repressão, com base em cartas de Jalics e Yorio a familiares.
“A versão mais próxima da verdade é que, no mínimo, ele passou informação sobre eles e depois lavou as mãos, quando poderia ter feito muito mais para protege-los”, afirma Sylvia Colombo.
Versão mais próxima da verdade não é, necessariamente, a verdade.
O que se sabe, principalmente pelo filme “Pode me chamar de Francisco”, também no Netflix, é que Bergoglio alertou reiteradamente os dois padres dos riscos em que estavam incorrendo, e que comprometeriam a sobrevivência da ordem jesuíta na Argentina. Em vão.
Como estes se mantivessem intransigentes, Bergoglio suspendeu a condição de sacerdotes da dupla, o que teria facilitado a sua prisão.
“Yorio disse em suas cartas, antes de morrer, que era certo que Bergoglio os alertou e pediu que deixassem a favela de Flores, porque corriam risco”, afirma Sylvia.
“Mas, quando ouviu a negativa dos jesuítas, teria avisado os militares e só assim foi possível que eles fossem perseguidos e presos.”
Esse tipo de acusação, diga-se, emergiu na Argentina quando da eleição de Bergoglio como substituto do papa Bento XVI. No entanto,ao mesmo tempo, um sem número de personalidades saíram em defesa do atual Papa, fato ignorado pela correspondente da Folha em Buenos Aires.
À frente do defensores, ninguém menos que Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz de 1980, refutou as acusações Papa Francisco. Ele próprio perseguido pela ditadura, Esquivel afirmou que alguns bispos foram cúmplices do regime, mas não foi o caso de Bergoglio.
Sua posição foi confirmada por Julio Strassera, promotor que atuou no julgamento dos integrantes das juntas militares argentinas. “Tudo isto é uma canalhice, absolutamente falso, em todo o julgamento não houve uma só menção a Bergoglio”, declarou Strassera em entrevista à Rádio Mitre, da capital portenha.
Mas o desmentido mais poderoso, certamente, é o de Jalics, um dos dois padres que teriam sido abandonados à própria sorte por Bergoglio. Numa declaração, publicada no site da ordem jesuíta alemã, Jalics, hoje com 92 anos, que aparece no filme reconciliando-se com Francisco, afirmou: “O missionário Orlando Yorio e eu mesmo não fomos denunciados pelo padre Bergoglio.”
De qualquer maneira, como mostra o filme de Fernando Meirelles, “Dois Papas”, sua atuação durante a ditadura militar argentina marcou profundamente o atual papa, ao ponto de levá-lo a considerar não merecer sua escolha como sucessor de Bento XVI.
Ele sempre poderia ter feito mais, é verdade. Mas isso não o torna cúmplice do regime, como querem seus detratores. Além disso, é preciso considerar o ambiente de terror da época, que provocou a morte e desaparecimento de mais de 30 mil pessoas, a tortura e a perseguição desapiedada praticada pelas forças de segurança.
Nesse cenário, em que a sobrevivência é algo a ser alcançado a cada dia, não é fácil ser herói.
Mesmo assim, ao contrário do que diz Sylvia Colombo, o livro “A lista de Bergoglio”, do jornalista italiano Nello Scavo, mostra que Francisco, a exemplo do cardeal Eugenio Salles, montou uma rede de proteção que deu guarida a dezenas de opositores argentino- Sylvia sustente que nem foram tantos como sugere o filme.
O prefácio é do Nobel Esquivel, que escreveu: “Bergoglio contribuiu para ajudar os perseguidos.”
Tampouco se justificam cobranças como a feita por Sylvia Colombo a Bergoglio, em relação a sua permanência na ordem jesuíta: “ao saber que a Igreja estava do lado dos ditadores, por que não largou a batina, se sabia muito bem sobre os desaparecidos?”
Não seria o caso de Sylvia se perguntar se diante da censura imposta à imprensa brasileira durante a ditadura não seria mais indicado que seus patrões da Folha de S.Paulo tivessem fechado o jornal?