Publicado no site Rede Brasil Atual (RBA)
POR MARINA DUARTE DE SOUZA, do Brasil de Fato
Em 1964, a ditadura militar criou um dos seus principais órgãos de espionagem, o Serviço Nacional de Informações (SNI). Responsável pela perseguição e monitoramento de adversários do governo dentro e fora do regime, o SNI produzia dossiês, informações e fichas individuais sobre adversários políticos do regime.
Passados mais de 30 anos do início do processo de redemocratização, o país volta a viver o “pesadelo” que o órgão representava: o uso do Estado para vigilância ou investigação de opositores políticos do Planalto.
A análise é do antropólogo Luiz Eduardo Soares, um dos alvos do dossiê de monitoramento sigiloso produzido pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Estão listados 579 servidores federais e estaduais de segurança, identificados com o “movimento antifascista”, e professores universitários, por serem críticos do governo Bolsonaro.
“Bolsonaro sempre teve o sonho de recriar o SNI. E o sonho de Bolsonaro está se convertendo no nosso pesadelo, no pesadelo da sociedade brasileira, porque isso está se concretizando. Agora nós temos a renovação com a restauração do espectro mais abrangente que era típico da ditadura”, afirma ele sobre o dossiê. Revelado pelo portal UOL, o documento foi elaborado pela Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do órgão.
Procedimento ilegal
Nesta sexta-feira (7), o ministro da Justiça, André Mendonça, será ouvido sobre o relatório sigiloso elaborado pela pasta. Será na Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência da Câmara dos Deputados.
Luiz Eduardo Soares foi secretário nacional de Segurança Pública durante o início do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). É autor de vários livros sobre o tema. Ele estava enquadrado no subtítulo do relatório denominado “formadores de opinião”. São citados também o especialista em direitos humanos Paulo Sérgio Pinheiro, o secretário estadual do Pará Ricardo Balestreri e o acadêmico da Universidade Federal da Bahia Alex Agra Ramos.
Para Soares, o “procedimento ilegal e inconstitucional” é mais um passo de Bolsonaro para acuar militantes que defendem a democracia. Além de ser uma auto declaração do fascismo do governo. “Na medida em que esses engenheiros do caos, arautos do autoritarismo definem movimentos, militantes e intelectuais antifascistas como um problema, isso parece sugerir que eles próprios se põem no alvo das críticas e da repulsa do antifascismo. Portanto, se identificam eles mesmos com o fascismo, o que é uma espécie de declaração enviesada e paradoxal de culpa. Como é possível tomar o antifascismo como uma ameaça? Nossa Constituição é antifascista, a população brasileira, os segmentos majoritários que se afirmam pela democracia são evidentemente antifascismo”, pontua o especialista.
Desespero para criminalizar
Entre os monitorados, Alex Agra Ramos vai na mesma linha do antropólogo e pontua que é uma tentativa “desesperada do governo de criminalizar os policiais antifascistas”. Embora não tenha sido secretário de segurança ou professor universitário, ele também tem uma pesquisa acadêmica na área de segurança pública. E contribui com o coletivo de Policiais Antifascismo, um dos principais alvos do dossiê.
“Eu me surpreendi inicialmente não pela existência do monitoramento em si, mas me surpreendi de certa forma até positiva por ver que se esse monitoramento está acontecendo é porque o coletivo de policiais está diante do governo produzindo algum tipo de incomodo de natureza política”, relata Ramos.
Ele relembra que estava com Soares e Balestreri em uma mesma mesa do Congresso dos Policiais Antifascistas em 2018. De acordo com a reportagem, os nomes dos agentes da segurança pública estaduais e federais foram tirados de dois manifestos antifascistas e em defesa da democracia de 2016 e 2020.
Tríplice mensagem
Na avaliação de Soares a tentativa de ameaça à democracia expressa no dossiê de monitoramento dos opositores, via cerceamento da livre troca de ideias e opiniões, se dá por meio de uma “tríplice mensagem”: para ruas e redes, para instituições e para a opinião pública.
“Primeiro lugar, uma mensagem de núcleos do governo aos seus apoiadores ativistas, aqueles que têm saído às ruas defendendo bandeiras antidemocráticas. Muitas vezes assumidamente fascistas, o recado que se passa tacitamente é de que ‘estamos aqui no front interno e vocês sigam nas ruas e redes’”, aponta o antropólogo.
Nesse sentido também chega para a sociedade como um todo a intimidação de que quem ousa criticar o governo, ou quem se opõe ao fascismo, sofrerá consequências sem precedentes, com uma investigação clandestina à margem das leis e da Justiça.
E uma terceira mensagem, para as instituições, daqueles que são alvo do dossiê. “Na medida que isso significa também uma autorização tácita para que sejam perseguidos. Quase que uma convocação para que estas instituições excluam, persigam e atentem, vigiem estas pessoas que são marcadas”, coloca Soares.
Perseguição
Não à toa, o antropólogo alerta que a tortura e os porões da ditadura, que provocaram a morte de milhões de opositores do regime, eram “irmãos siameses” do Serviço Nacional de Inteligência (SNI). “Não há um sem o outro. Se nós estamos agora diante de uma ameaça de recriação do SNI, nós estamos num grau de ameaças muito mais graves e que podem se transformar numa realidade prática.”
Segundo a reportagem, o levantamento foi repassado a órgãos políticos e de segurança do país, como a Polícia Rodoviária Federal, a Casa Civil da Presidência da República, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), a Força Nacional. Além de três “ centros de inteligência ” vinculados à Seopi no Sul, Norte e Nordeste do país.
Os centros funcionam como pontos de reunião e intercâmbio de informações entre o Ministério da Justiça e policiais civis e militares que são recrutados pelo ministério. Ainda não se sabe a consequência da disseminação dessas informações.
Ramos relembra que, durante a ditadura militar, cerca de 5 mil militares foram assassinados, postos na reserva, exilados e presos. E reitera que o levantamento pode ser uma ameaça física aos servidores.
“De certa forma é uma maneira de o governo também, na minha visão, dizer o seguinte para as instituições: ‘olha estamos dando um suporte a vocês. E qualquer punição que vier em torno desses policiais tem legitimidade do ponto de vista do governo federal’”, analisa o cientista político.
Repercussão
Tanto Luiz Eduardo Soares, como Alex Agra Ramos vão recorrer à Justiça. O antropólogo posicionou-se individualmente e o cientista político está na ação coletiva junto ao grupo de Policiais Antifascistas.
A ousadia do Ministério da Justiça e do governo federal gerou reações amplas em toda a sociedade civil dentro e fora do país. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA criticou o monitoramento: “Dossiê não é legitimo, nem necessário em uma sociedade democrática”.
Em uma nota conjunta, Associação Brasileira de ONGs, Associação Juízes pela Democracia (ABJD), Artigo 19, Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Conectas Direitos Humanos, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Instituto de Defesa do Direito de Defesa, Instituto Pólis, Instituto Sou da Paz, Instituto Vladimir Herzog, entre outras organizações, também repudiaram o relatório.
Quando o caso veio à tona, no dia 24 de julho, o ministério não negou a existência do dossiê. Em nota, disse que a atividade da Seopi integra o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin). E que as “ações especializadas” desenvolvidas pelo órgão têm o objetivo de “subsidiar decisões que visem ações de prevenção, neutralização e repressão de atos criminosos de qualquer natureza que atentem contra a ordem pública, a incolumidade das pessoas e o patrimônio”.
Não detalhou, contudo, quais são os supostos atos criminosos cometidos por esse grupo.
STF cobra esclarecimentos
Pressionado por partidos de oposição, o Supremo Tribunal Federal (STF) cobrou esclarecimentos do governo. Em resposta enviada na quinta-feira (6), o Ministério da Justiça afirmou que não produz dossiê contra opositores. E que nunca monitorou adversários com viés investigativo, punitivo ou persecutório penal. Mas, assim como em pronunciamentos anteriores, não negou a existência do levantamento.
Requerimentos de convocação do ministro para esclarecimentos no Congresso Nacional também foram apresentados. Como o que levará o ministro, nesta sexta-feira, à Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI). A reunião ocorrerá na sede do ministério e será reservada.
O procurador regional dos Direitos do Cidadão, Enrico Rodrigues de Freitas, do Ministério Público Federal, deu dez dias para que a pasta se posicionasse sobre o dossiê. O prazo termina amanhã.
Em resposta à pressão recebida no governo, Mendonça demitiu o diretor de Inteligência da Seopi (Secretaria de Operações Integradas), coronel do Exército Gilson Libório de Oliveira Mendes. E afirmou que determinou a abertura de apuração interna sobre a elaboração do relatório sigiloso.
“Esta primeira iniciativa, que eu vejo como uma espécie de testagem, o governo caminha aos trancos e barrancos com as suas contradições. Avança claudicante, vendo até onde pode prosseguir, até onde pode avançar, quais os limites que a resistência democrática consegue impor. Nesse caso, me parece que nós conseguimos razoavelmente, nesse momento, reverter a situação. Colocamos o governo na defensiv,a em função do clamor social e institucional que proveio de todas as áreas”, afirma Soares. E salienta que a atenção deve ser mantida, visto que Bolsonaro acaba de criar o Centro Nacional de Inteligência com “funções nebulosas”.
Procurados pelo Brasil de Fato, o Ministério da Justiça e da Segurança Pública não havia respondido até o fechamento desta reportagem.