Cinco dias antes do início do julgamento pelo STF da ação que criminaliza a homofobia, a médica Júlia Rocha relatou em seu Instagram um caso que atendeu há cerca de 20 dias. É sobre um jovem negro, 22 anos, evangélico e gay.
“Ele carregava consigo uma enorme culpa por não conseguir ‘corrigir sua sexualidade’ e seu afeto”, contou.
O rapaz tinha tentado se matar, com remédios do pai, e passava por acompanhamento psiquiátrico. Estava gravemente deprimido.
Doutora Júlia prescreveu a ele um remédio poderoso: a busca pelo conhecimento, o conhecimento que liberta.
“Pedi para que ele buscasse pelo Spartakus Santiago, pelo AD Júnior, dois jovens negros e gays que compartilham suas vivências e aprendizados nas redes sociais. Indiquei acompanhar intelectuais negras: Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro e Juliana Borges. Prescrevi a leitura do livro ‘O que é racismo estrutural’ do Silvio Almeida. Falamos de intolerância, de espiritualidade, de afeto… Entreguei esta receita impregnada de um desejo imenso de vê-lo melhor”, afirmou.
O problema do jovem não era de saúde física. Ele, na opinião de Júlia, precisava se conhecer melhor e, mais do que isso, se aceitar.
“A família já estava mobilizada para apoiá-lo, mas pra mim ele precisava se aprofundar no entendimento do seu lugar social como um homem gay, negro e periférico. Tem horas que só enxergando e conhecendo as estruturas que nos oprimem pra conseguir dar o próximo passo”, comentou.
Deu certo.
Alguns dias depois, ela o encontrou no corredor do ambulatório, e ele estava sorrindo.
“Aquele instante durou uns anos”, disse a médica, sobre o sentimento que teve.
“Tudo bem?”, perguntou ela.
“Estou melhor. Bem melhor…. Li o livro…. passei a receita pra outros amigos….”, respondeu ele.
“Que bom!”, sorriu ela.
“Quero marcar meu retorno com você”, pediu.
“Alguma novidade?”, quis saber a doutora.
E ele se aproximou para falar o segredo:
“Tô namorando.”
Júlia é um tipo de médica que jamais iria ao aeroporto para hostilizar colegas cubanos.
É de outra natureza.
Filha de médico e de uma cantora, decidiu se dedicar às duas profissões.
Como médica e cidadã, diz que se encontrou no SUS.
“É o que dá sentido à minha vida”, afirmou, em uma entrevista recente, ao site Lunetas, sobre sua rotina em uma Unidade Básica de Saúde do Rio de Janeiro.
Costuma dividir na rede social sua experiência profissional. Um dos seus textos define bem quem é e o que pensa. O título é “Existe Peleumonia”:
“Eu mesma já vi várias. Incrusive com febre interna que o termômetro num mostra. Disintiria, quebranto, mal olhado, impíngi, cobreiro, vento virado, ispinhela caída. Eu tô aqui pra mode atestá. Quem sabe o que tem é quem sente. E eu quero ouvir ocê desse jeitinho. Mode a gente se entendê. Por que pra mim foi dada a chance de conhecê as letra e os livro. Pra você, só deram chance de dizê.
Pode dizê. Eu quero ouvir.”
Negra, doutora Júlia já sofreu com violência racista, mas não deixou barato. Expôs a agressora em sua rede social.
É uma mulher que se apresenta no Facebook com bandeira verde e amarela, e escreveu o seguinte comentário, ao ver uma foto de Júlia com cabelos descoloridos:
“Com vergonha da cor, essa tribufu oxigena a juba para parecer menos negra. Típico de esquerdista e mal amada”, disse a agressora, Ieda Maria Coelho.
Casada e mãe de primeira viagem, doutora Júlia, em resposta, usou poucas palavras, e foi certeira:
“Eu conheci o mal. Ainda bem que eu não ando só.”
Júlia é também cantora e compositora. Nos fins de semana, se apresenta com o marido e a banda deles em bares e festas.
São outros momentos de generosidade, porque só com quem tem uma coração gigante compartilha talento e amor. Veja vídeo: