O texto abaixo, publicado originalmente no site Amazônia Real, é de Lou-Ann Kleppa, doutora em Linguística e professora da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Ela dirigiu o documentário “Entre a Cheia e o Vazio”, sobre a relação da cheia do rio Madeira de 2014 e as usinas hidrelétricas de Santo Antonio e Jirau. Sobre o documentário, saiba mais clicando neste link.
Em outubro de 2005, eu e mais dois companheiros de caminhada fizemos um trecho da Estrada Real, em Minas Gerais: saímos de Diamantina e dez dias depois chegamos em Ouro Preto, numa época em que a Estrada Real ainda não era muito conhecida – nem mesmo pelos moradores das cidades pelas quais passamos. Bento Rodrigues está viva em nossa memória, entre outros motivos, porque dormimos na igreja, porque as casas se organizavam em torno de um campo (de futebol?), porque comemos no restaurante da Sandra, único comércio da cidade, frequentado por figuras peculiares como por exemplo um garimpeiro cuja cor de pele se misturava com a cor do couro que vestia e que falava no “orinho” que calculava encontrar.
O pai da Sandra tinha sido tropeiro e nos disse que a Estrada Real não era a estrada pela qual tínhamos chegado; o Caminho dos Diamantes tinha sido engolido pelo mato na altura de Bento Rodrigues.
Agora foi a lama que engoliu Bento Rodrigues. Dia 05 de novembro de 2015 duas barragens de rejeitos de mineração, Fundão e Santarém, ambas da Samarco, se romperam. A previsão é que essa cheia de lama, saída de Mariana em Minas Gerais, alcance o oceano, no Espírito Santo, cinco dias depois, seguindo pelo Rio Doce.
As primeiras informações veiculadas pela mídia corporativa, alimentada por notas emitidas pela empresa responsável, a Samarco – da qual a Vale (do Rio Doce) detém 50% das ações – foram que a lama não é tóxica (bom, trata-se de resíduos de mineração: como pode não ser tóxica?) e que a provável causa foram abalos sísmicos da ordem de 2 pontos na escala Richter.
Os sismólogos convocados pela imprensa dizem que os abalos sísmicos são fenômenos naturais. Pois há estudos conduzidos por engenheiros que provam que barragens (tanto represas de hidrelétricas como represas de resíduos de mineração), por exercerem pressão sobre o solo e subsolo, provocam abalos sísmicos.
Onde antes havia a pressão da atmosfera ou de um rio, se instala a pressão exercida pela água da represa, o concreto e ferragem da barragem. O texto mais didático e cheio de exemplos de casos de terremotos provocados por barragens – e suas consequências – é de Oswaldo Sevá (e pode ser acessado aqui. )
Logo no início do texto, Sevá alerta que barragens são obras sujeitas à deterioração: entopem, colapsam, se rompem. Por isso o controle, por órgãos públicos e não beneficiados pelo lucro das empresas de energia ou mineração, deveria ser exemplar. A pedido do Ministério Público de Minas Gerais, na ocasião em que a Samarco pedia a revalidação da sua Licença de Operação, foi feito um laudo, em 2013, apontando para riscos de rompimento da barragem Fundão.
No ano de 2014, apesar do laudo, a Samarco aumentou a sua produção, acumulando 15% a mais de rejeitos de mineração na barragem Fundão. Não há notícias de que a represa tenha sido remodelada para suportar esse incremento. Em junho de 2015 foram expedidas a Licença Prévia e a Licença de Instalação para a unificação de Fundão e Germano, outra barragem da Samarco.
Trocando em miúdos: em 2013, um laudo apontava riscos de rompimento de barragem; no ano seguinte, o acúmulo de rejeitos nesta barragem aumentou; no ano seguinte, estudos de impacto ambiental atestam que a barragem apresenta “totais condições de segurança”.
Assim como na cheia histórica do rio Madeira em 2014, quando as barragens de Jirau e Santo Antônio, em Rondônia, foram acusadas de serem corresponsáveis pelo desastre social e ambiental, o nexo causal entre a barragem e a tragédia não é simples. Para as empresas (ESBR/Suez e SAE/Odebrecht), a causa do problema era uma só: a chuva. Do mesmo modo, a Samarco afirma que os abalos sísmicos (ignorando que a própria barragem possa ter causado os tremores) são a causa do rompimento das barragens.
Em ambos os cenários, causas naturais e externas ao empreendimento isentam as empresas de qualquer responsabilidade. Mas quando se analisa o processo de licenciamento de Jirau, Santo Antônio, Fundão e tantas outras barragens, como por exemplo Teles Pires, percebe-se que quem faz os estudos de impacto ambiental são entidades contratadas pelos consórcios. Uma das causas da cheia do Madeira e do rompimento das barragens em Mariana é o planejamento anulado pela regra da exploração máxima em tempo mínimo.
Todo o processo de estudos de impacto, licenciamento e monitoramento ambiental é encarado pelas grandes empresas como uma mera formalidade. O comprometimento da vida de centenas de milhares de pessoas e do meio ambiente de regiões inteiras por tempo indeterminado, é o resultado dessa cegueira ética.
O Brasil de Fato está cobrindo o desastre in loco e periodicamente posta notícias diretamente de Mariana. Segundo o jornal, “o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) possui documentos com indícios de vazamento em mais de 240 pontos de infiltração na barragem que se rompeu.” Ou seja, mesmo que as chuvas de janeiro na Bolívia tenham sido atípicas, houve uma sobrecheia no reservatório e as empresas não operaram no limite de segurança, segurando água. Mesmo que tremores tenham sido registrados em Mariana, a estrutura da barragem já estava fragilizada e o volume de rejeitos acumulados foi aumentado em 2014. As causas do desastre podem ser retraçadas até o planejamento da barragem.
As consequências do desastre igualmente são paralelas. Assim como a Defesa Civil e poder local transformaram os ribeirinhos do Madeira cujas casas e terras foram alagadas em espectadores, a população de Bento Rodrigues foi impedida de salvar pessoas, animais e pertences. O trabalho de resgate foi feito pelo ar, não por terra – e as autoridades insistem que a lama não é tóxica. Campanhas de arrecadação de alimentos, água mineral, roupas e colchões desoneram o Estado e as empresas responsáveis de prestar assistência a quem perdeu o chão. Não se fala em indenizações: Dilma autorizou o saque do FGTS, de modo que quem perdeu tudo possa pagar por tudo que lhe foi tomado.
Talvez alguém se pergunte por que há tanto investimento em energia e mineração e por que o senso comum acha que ambos estão a serviço do progresso do país. A imensa maioria da energia produzida nos rios brasileiros serve à indústria eletro-intensiva (que prioritariamente produz alumínio para exportação). A imensa maioria dos minérios extraídos nas montanhas brasileiras é exportada. A população perde seus rios e montanhas – e o acesso à água.
A Samarco, por exemplo, possui 3 minerodutos paralelos que levam polpa de ferro de Mariana (MG) a Anchieta (ES), gastando 4,39 metros cúbicos de água por hora. Essa água toda, retirada dos rios de Minas Gerais – estado que atualmente está com níveis de umidade relativa do ar alarmantes – conduz o minério e é descartada no mar.
O Código de Mineração está em debate. Assim como o novo Código Florestal permite mais desmatamento e devastação, o novo Código de Mineração pode comprometer o acesso à água e ao território por parte de populações indígenas, quilombolas e tradicionais. É preciso aprender com os erros e com as catástrofes induzidas.
Encerro com uma citação de Sevá, que, se entre nós estivesse, estaria indignado e inconformado com mais esta tentativa de naturalização de um desastre social e ambiental induzido: “Vários acidentes em barragens brasileiras, bastante comentados nas localidades onde ocorreram, foram abafados pelas empresas e pela imprensa a seu serviço, logo sendo retirados da pauta da chamada “mídia”, e pior, poucos acidentes foram estudados nas teses universitárias. Mas, o fato é que fazemos parte da lista de países que apresentam frequência razoável e boa variedade de situações de risco.” (SEVÁ, 2011, p. 17)