Publicado originalmente no Consultor Jurídico (ConJur)
Por Lenio Luiz Streck
Os democratas lemos estarrecidos o comandante da Aeronáutica da República do Brasil dizer ao jornal O Globo que aquilo que foi dito na nota do ministro da Defesa e dos três comandantes contra as declarações do senador Omar Aziz foi, de fato, um “alerta” e que não irão enviar “50 notas para ele (Omar Aziz)”. “É apenas essa”.
Diante disso, a jornalista Miriam Leitão comenta: “É como quem diz: é a última vez que vamos falar”.
Na entrevista, a repórter do jornal insiste, perguntando “o que pode acontecer”. E o comandante responde: as Forças Armadas têm “mecanismo dentro da base legal para evitar isso”.
Fico me perguntando: qual seria a base legal? Se a base é legal, não precisa ameaçar.
Ou ele estaria fazendo uma ameaça à democracia brasileira, tipo “tomaremos o poder”?
Como bem pergunta a jornalista Leitão: O que os militares vão fazer? Fechar o Congresso? Prender o Omar?
E o comandante diz mais coisas desse nível e sempre no tom de ameaça. Grave. Muito grave. Repete-se o episódio da declaração do general Villas Boas. Que ameaçou o Supremo Tribunal Federal. Do mesmo modo que o presidente Bolsonaro diz: ou haverá eleição limpa ou não haverá.
Esse é o quadro. Tudo isso se torna mais grave quando o comandante da Aeronáutica critica a oposição. Mas ele é não é um militar da ativa? Pode fazer observações políticas? E pior: sempre em tom ameaçador.
Será que o comandante não sabe que, como pessoa, Carlos Almeida Baptista Junior pode ter preferências políticas, como comandante da Aeronáutica não pode?
Mas não adianta. O fantasma do militarismo e do golpismo não nos deixa em paz. Arrasta suas correntes a todo momento. Vejam literalmente uma parte do que disse o comandante:
“Nós temos mecanismos dentro da base legal para evitar isso. E aí nós precisamos preservar as instituições. Receio que o país entenda que apenas as Forças Armadas sejam responsáveis pela garantia institucional. Não, todas as instituições são responsáveis. Estou falando da instituição Parlamento brasileiro, da Presidência da República, dos tribunais, do Supremo Tribunal Federal, da imprensa. Tem instituições que ainda não entenderam isso. Mas nós temos certeza da nossa responsabilidade.”
O comandante diz que [os militares] “precisamos preservar as instituições”. Como assim? Deveria se informar melhor sobre duas ou três coisas. Uma delas é que não existe base legal nenhuma que pode ser usada, nem contra o senador, nem contra a democracia. Nem o artigo 142 da Constituição diz o que o comandante acha que diz. Ele não esgrimiu o artigo 142, é verdade. Mas, o que seria essa “base legal”?
O artigo 142 da CF, sempre esgrimido por setores das três armas (e pelo presidente Bolsonaro), nem de longe permite o que o comandante insinua. Aliás, o STF já interpretou o artigo 142. Inclusive o ministro Barroso chamou de “terraplanismo jurídico” a tese de que os militares poderiam ser chamados para intervir. No que foi acompanhado por 99% da comunidade jurídica. Portanto, em termos de direito constitucional, o comandante precisa de melhor assessoria.
Segundo, as democracias consolidadas não dependem das Forças Armadas. As Forças Armadas são importantes para os países. Mas não para aquilo que pessoas como o comandante pensa que servem. Estados Unidos, Reino Unido, Espanha, Portugal, Países Baixos (até mesmo a argentina e o Uruguai). Nenhum desses países tem militares funcionando como “guardiões da democracia”. A função das Forças Armadas não é “cuidar da democracia” ou “tutelar os Poderes” ou coisas assim.
De todo modo, parece que o comandante (e parece estar falando em nome dos demais comandantes e do próprio presidente da República) está deixando de lado qualquer força de argumento e ameaçando com o uso do argumento da força.
Resta saber se combinaram com a sociedade, com a imprensa, com o Congresso (no mesmo dia, 9 de julho, o presidente do Senado, ainda que timidamente, deixou claro que a nota dos três comandantes foi fora de tom e também respondeu ao comandante da Aeronáutica), com o Poder Judiciário, com o Ministério Público, com a Defensoria Pública, com os sindicatos e, mais ainda, com a comunidade internacional.
A pandemia já tornou o Brasil extremamente malvisto pelo resto do mundo; parece que o comandante quer que o Brasil seja visto também como um país em que os militares tutelam a democracia, com ameaça constante de intervenção ou, quiçá, com uma intervenção. Como a União Europeia encararia isso, por exemplo?
A questão é: qual será o dia em que os militares brasileiros se comportarão como os seus colegas dos Estados Unidos? Ou da Alemanha? Ou da Espanha?
Cá para nós, a ameaça — velada ou não — do comandante está mais para países como Honduras e correlatos.
E essa história de que “continuamos legalistas” ou coisas assim me lembra os tempos de ditadura, em que, quando a oposição poderia ganhar algum governo de Estado ou prefeitura importante, aparecia um prócer militar para “tranquilizar”: “— ah, quem vencer, levará”.
Em um verdadeiro Estado Democrático nenhum militar precisa dizer “somos legalistas”. Alguém lembra de uma manchete do tipo “generais vão ao rei da Suécia ou ao presidente de Portugal para dizer: a democracia está mantida; somos legalistas”? Não? Pois é.
Há muito que aprender aqui nos trópicos.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e titular da Unisinos (RS) e da Unesa (RJ).