POR JOSÉ EDUARDO BICUDO, professor da Universidade de Wollongong, Austrália.
O verão no hemisfério norte no ano de 1988, ano da promulgação da constituição cidadã no Brasil, foi especialmente quente e as queimadas que ocorreram na Amazônia também naquele ano mereceram destaque especial: tratava-se de um fenômeno em princípio local, mas com conseqüências globais, pelos efeitos sobre as mudanças climáticas e pela destruição da biodiversidade. Esses acontecimentos, de certo modo, convenceram a opinião pública de que o efeito estufa não era apenas teórico.
Ainda em 1988, James Hansen, climatologista da NASA, prestou um importante testemunho junto ao senado norte-americano, chamando atenção para o fato de que o planeta estava sofrendo um aquecimento inexorável, como conseqüência das fortes emissões de gases de efeito estufa. Nessa época, ainda não se falava em aquecimento global, porém muitos cientistas, inclusive brasileiros, já trabalhavam com essa ideia.
Em 1989, o escritor Bill McKibben escreveu um artigo publicado, na revista The New Yorker, cujo título em português é “O Fim da Natureza”, no qual ele faz uma reflexão profunda sobre o significado do efeito estufa. Segundo McKibben, “as mudanças que ocorrem no nosso mundo, e que nos afetam em particular, podem ocorrer durante o nosso período vida – não tão somente mudanças provocadas pelas guerras, mas eventos muito maiores e devastadores.
Ao não reconhecermos a existência de tais mudanças, corremos o risco de ultrapassar o seu limiar. Eu acredito que estejamos vendo o fim da natureza. Isso não significa o fim do mundo. A chuva continuará a cair e o sol continuará a brilhar. Quando digo “natureza”, refiro-me a um certo conjunto de ideias acerca do mundo em que vivemos e do nosso lugar neste mundo. Mas, a morte dessas ideias começa com as mudanças concretas que ocorrem no nosso entorno, as quais podem ser mensuradas pelos cientistas.
Cada vez mais freqüentemente essas mudanças irão colidir com as nossas percepções, até que a nossa sensação acerca da natureza, como eterna e separada de nós, finalmente se desmancha e assim seremos capazes de ver claramente o que fizemos”. Passados quase 30 anos, estamos muito próximos de ultrapassar esse limiar, mas muitos ainda não perceberam, ou se recusam a fazê-lo.
Há duas semanas, um pedaço da Antártica, quase do tamanho do Distrito Federal, em torno de 5.000 km2 e pesando um trilhão de toneladas, desprendeu-se da plataforma de gelo denominada Larsen C e começou a flutuar em direção a águas mais quentes.
É bem possível, conforme escreveu recentemente o escritor Fen Montaigne, no The New York Times, que se um pedaço maior de gelo se desprender do lado oeste da Antártica e derreter no oceano, o nível do mar poderá subir até 5 metros. Se isso ocorrer, as implicações poderão ser devastadoras para centenas de milhões de pessoas, rompendo cadeias alimentares, inundando cidades costeiras, disseminando doenças, disparando migrações em massa e solapando economias de um modo totalmente imprevisível.
Enquanto isso, no Brasil, como se sofrêssemos os efeitos de um tsunami, observa-se a destruição do pouco daquilo que foi conquistado, ao longo dos últimos 30 anos, para preservar o meio ambiente e amenizar os efeitos provocados pelas mudanças climáticas.
O avanço sem freios do agronegócio sobre biomas brasileiros, a poluição dos rios e das águas costeiras, a invasão de terras indígenas demarcadas, acompanhada da matança de pessoas de modo covarde e cruel, são todos sintomas de uma sociedade que perdeu o rumo, não sabe mais o quê priorizar para o seu próprio futuro e sobrevivência, e nem como fazê-lo.
A agenda binária e retrógrada promovida pelos golpistas que solaparam a democracia brasileira a serviço de uma elite compromissada apenas com seus próprios interesses, o ódio disseminado pela mídia conservadora e retrógrada, amplificado nas redes sociais, colocam uma cortina de fumaça e não permitem um debate sério sobre as questões ambientais.
A ignorância, a indigência intelectual, a má fé e a mediocridade dos nossos governantes, parlamentares e de membros do poder judiciário, com raríssimas exceções, estão nos levando a uma situação na qual o futuro das próximas gerações poderá ficar para sempre comprometido.
O desmonte da ciência brasileira, em especial, que vem sendo feito nos últimos dois anos e que, de acordo com a agenda golpista, se prolongará no mínimo pelas próximas duas décadas, significa que haverá cada vez menos condições mínimas necessárias para a realização de novas descobertas e aquisição de novos conhecimentos para o enfrentamento dos efeitos provocados pelo aquecimento global. Todavia, o problema dessa péssima estratégia é que os seus responsáveis não terão como escapar da armadilha que criaram.
Estamos todos, golpistas e golpeados, literalmente no mesmo barco. Está na hora de se reverter essa monstruosidade. Chega de nos deixarmos levar por distrações e distorções fomentadas por pessoas inescrupulosas e propagandeadas de maneira irresponsável pela mídia conservadora e retrógrada. O meio ambiente nos une a todos, pois dependemos dele para a nossa sobrevivência assim como a das futuras gerações.
É urgente que não percamos mais tempo com as polarizações esquizofrênicas que têm caracterizado as relações humanas nos últimos tempos no Brasil. A ganância dos golpistas não os tornará mais imunes aos efeitos do aquecimento global. Pelo contrário, fará com que este chegue ainda mais cedo, infelizmente para todos. Portanto, as pessoas que vêm a preservação do meio ambiente como um fator de união não terão nada a perder ou o que temer. Pelo contrário, só terão a ganhar com um movimento de resistência que impeça e faça reverter o avanço dessa onda suicida de extermínio.
Como salientou McKibben, estamos muito próximos do limiar de extinguirmos a “natureza” como ainda a percebemos, ou seja, eterna e separada de nós. Temos, portanto, a responsabilidade de agirmos já, sem hesitações, para garantir a sobrevivência das gerações futuras, com no mínimo os mesmos benefícios que a natureza nos proveu até agora.
O egoísmo extremo e a visão de curto prazo de alguns poucos não poderão prevalecer sobre aquilo que, sem dúvida alguma, é o desejo da grande maioria dos seres humanos e que enxergam a preservação do meio ambiente como um dos pilares da sua própria sobrevivência. Como diz Naomi Klein, “isso muda tudo” (título de livro de sua autoria).