POR MIGUEL ENRIQUEZ
Em memorável artigo publicado na Folha de S.Paulo em novembro do ano passado, o jornalista Clóvis Rossi não escondia o seu entusiasmo com a vitória do Cambiemos, agrupamento eleitoral do presidente Mauricio Macri nas eleições legislativas.
Ancorado em sua experiência como correspondente em Buenos Aires no começo da década de 1980, Rossi, inebriado com o programa “modernizador” do mandatário, se permitiu uma previsão — na verdade, mais do que isso, um ato de fé.
“Tomara que continue valendo o efeito Orloff, aquela pressuposição dos anos 1980 de que o Brasil de amanhã seria a Argentina de hoje”, afirmou.
“Se continua valendo, então o presidente argentino Mauricio Macri acaba de pôr na roda uma agenda revolucionária que, se copiada no Brasil para a campanha eleitoral de 2018, pode alçá-la a um patamar enriquecedor.”
Segundo Rossi, reproduzindo o pensamento médio do mercado financeiro e dos políticos conservadores do continente, Macri estaria oferecendo aos argentinos um conjunto de reformas (trabalhista, tributária, previdenciária, entre outras) com nítido fundo liberal.
“Como no Brasil, aliás, mas com muito mais profundidade e com um amparo popular de que não goza seu colega Michel Temer”, pontificou. Parecia ecoar o entusiasmo do próprio Macri, esfuziante com o sucesso de seu grupo político. “Estamos começando a viver os 20 melhores anos da vitória argentina”, afirmou o presidente.
Nada como um dia depois do outro.
Para desgosto da patota neoliberal e de Clóvis Rossi, passado apenas meio ano desse momento de euforia, a dura realidade atropelou as ilusões salvacionistas.
A perda de credibilidade do Banco Central argentino, incapaz de debelar a inflação, que teima em permanecer na casa dos 20% anuais (a meta oficial era derrubá-la para 5%), a avaliação de que os déficits das contas públicas e externa continuam alta, a fuga de capitais e a duplicação dos índices de desemprego, empurraram o governo local para uma crise de confiança que nem mesmo o peronista mais otimista imaginaria presenciar tão cedo.
Resultado: desvalorização do peso, fixação de taxas de juros em inacreditáveis 40% ao ano e, o que foi mais humilhante, um pedido de socorro ao Fundo Monetário Internacional (FMI), no valor de US$ 30 bilhões, para conter a disparada da moeda americana.
Por uma dessas ironias da história, o efeito Orloff mencionado por Rossi continua valendo e sendo aplicado neste canto do mundo. A diferença é que no sentido inverso do pretendido pelo colunista. Não é o Brasil que está clonando o modelo da Argentina. É justamente o contrário.
Esse filme de horror assistido hoje pelos “hermanos” já vimos por aqui, e nem foi há tanto tempo assim. Acertou quem cravou no governo de Fernando Henrique Cardoso, nosso gênio da raça residente.
Embora seus áulicos tentem reinventar os oito anos de seu mandato, pós plano Real, como um período de estabilidade monetária e financeira para o país, o legado de FHC é muito semelhante ao cenário de destruição da economia que está sendo galhardamente construído por Macri.
Nos oito anos de FHC, a inflação acumulada chegou a 100% e a dívida pública passara de 30% para 5% do PIB. A taxa de juros contabilizou quase 45%, em 1999, e estava em 24,9% em dezembro de 2002, às vésperas da transmissão da faixa presidencial para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Mas é pelo lado cambial, que tanta aflige Macri nestes dias, que o efeito Orloff da gestão tucana é mais do que visível e preocupante. Sob a batuta do “pai” do Real, o Brasil quebrou nada menos do que três vezes.
A primeira bancarrota aconteceu em novembro de 1998, logo após o agravamento da crise russa, quando as reservas externas viraram pó, o que levou o Brasil a pedir um empréstimo de US$ 41,5 bilhões, concedidos por bancos internacionais como o Bird e o BID, e pelo FMI, que passou a monitorar a economia brasileira-não faltou também um aporte de US$ 14,5 bilhões de um pool encabeçado pelo presidente Bill Clinton e formado, além dos Estados Unidos, pelo Japão, Canadá e países da União Europeia.
Três anos depois, em setembro de 2001, o governo voltou a passar o pires, invocando fatores externos, como as turbulências do mercado internacional, o atentado de 11 de setembro e a crise da economia argentina – foram colocados à disposição do país mais US$ 15,6 bilhões.
Finalmente, no ano seguinte, o Brasil teve de sacar US$ 10 bilhões do FMI para enfrentar a volatilidade do mercado, assustado, entre outros motivos, pela temor da eleição de Lula no pleito de 2002. Até dava para pedir música no Fantástico.
O certo é que, ao fim da era FHC, o Brasil contabilizava US$ 37,7 bilhões em reservas, a metade do que dispunha alguns anos antes, mantidas mediante o auxilio do FMI e de outras agências estrangeiras.
Sua vulnerabilidade diante de ataques especulativos continuava preocupante, o que tornava sua economia suscetível às ingerências e políticas recessivas e anti-sociais do Fundo.
Ou seja: sem tirar, nem por, a Argentina de hoje é um replay retardatário do Brasil de ontem. E coloca mais uma vez em xeque todo um receituário neoliberal proposto pelas elites conservadoras para as nações da América Latina e que já demonstrou ser incapaz de resolver os problemas econômicos e sociais.
Em tempo: Nos governos Lula e Dilma, as reservas externas multiplicaram-se por 10, criando um colchão de solidez que blinda o país dos efeitos das crises internacionais e da especulação dos investidores estrangeiros.
Isso vem permitindo que a escalada do dólar seja enfrentada com tranquilidade pelo Banco Central, um feito aplaudido por certos setores da imprensa, sempre prontos a exaltar as virtudes do suposto dream team montado por Henrique Meirelles.
Coube ao economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-presidente do BNDES, ex-ministro das Comunicações do governo FHC e tucano de carteirinha, colocar as coisas no devido lugar. “Com uma montanha de mais de US$ 370 bilhões de reservas, até eu”, afirmou Mendonça de Barros em sua coluna radiofônica na BandNews.