Publicado originalmente no Brasil de Fato:
A unidade da direita brasileira em torno da eleição de Jair Bolsonaro (PSL), em 2018, não resistiu a seis meses de governo. Diante da evidente dificuldade de o presidente apresentar um projeto para o país, e de sua rápida perda de popularidade, muitos dos antigos aliados já iniciaram um processo público de deslocamento, numa fragmentação que tende a se acentuar com a aproximação do calendário eleitoral.
O horizonte dos que estão abandonando o barco bolsonarista é a sucessão presidencial de 2022. Mas a primeira grande batalha acontece nas eleições municipais do ano que vem. Em várias cidades do país, incluindo importantes capitais, como São Paulo e Rio de Janeiro, os candidatos e Bolsonaro terão de enfrentar nas urnas gente que até outro militava nas trincheiras do ex-capitão.
A batalha principal se dará em São Paulo, onde o presidente terá de medir forças com outro expoente da direita brasileira, o governador João Doria (PSDB). O racha envolve outras figuras que foram alçadas ao protagonismo da cena política no último período, como os deputados Alexandre Frota, hoje no PSDB, e Joice Hasselmann (PSL), além de integrantes do Movimento Brasil Livre (MBL), parte deles abrigada no DEM.
Bolsonaro e Doria partiram, sem escalas, de aliados a inimigos públicos. O governador de São Paulo não tem poupado ataques ao presidente, e vice-versa, provocando um racha por onde os apoios do governo federal escorrem.
No segundo turno das eleições de 2018, enquanto se esforçava para colar a imagem de comunista no então governador Márcio França (PSB), durante a corrida eleitoral para o Palácio dos Bandeirantes, João Doria forçava sua proximidade ideológica Bolsonaro, então concorendo à Presidência. No meio da campanha, ele chegou a alcunhar a expressão “Bolsodoria”, como se ambos fossem uma coisa só.
Em 10 de janeiro deste ano, Bolsonaro realizou a primeira reunião de seu mandato com um governador. O eleito foi justamente Doria, que foi acompanhado de Joice Hasselmann. Sete meses depois, em 29 de julho, o governador paulista veio a público para criticar o presidente por suas declarações a respeito de Fernando Santa Cruz, pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, que foi morto pelo golpe de 64.
“Eu sou filho de um deputado cassado pelo golpe de 64 e eu vivi o exílio com o meu pai, que perdeu quase tudo na vida em dez anos de exílio pela ditadura militar. Inaceitável que o presidente da República se manifeste da forma como se manifestou em relação ao pai do presidente da OAB. Foi uma declaração infeliz do presidente”, disse o governador.
Não satisfeito, no dia seguinte, Doria foi mais explícito sobre o racha. “Não teremos alinhamento político com o governo Bolsonaro. Isso nos dá liberdade de ter posições críticas em relação a determinadas posições que não representam a nossa visão.”
Os embates alcançaram a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), onde o líder do PSL, deputado estadual Adalberto Freitas, já ensaia uma oposição ao governador.
“Não dá para ser amigo do cara querendo disputar o cargo dele”, afirmou o parlamentar, sobre a possível disputa, em 2002, entre o tucano e o presidente.
A crise política
Para Jairo Nicolau, cientista político e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a desorganização da política nacional começa durante a crise no no governo da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), mas a direita é quem mais sofre com o processo.
“Antes de 2014, isso não aparecia, mesmo com os movimentos de 2013, que demonstraram muita insatisfação com a política. O que aconteceu entre 2014 e 2018, além da crise política global, foi a Lava Jato. A Lava Jato é o principal fator da desorganização política, ela desorganiza, com as investigações, o trio de partidos que eram os grandes operadores do sistema político brasileiro: PT, PSDB e o MDB. Com exceção do PT, ancorado com a força do Nordeste e o bom desempenho do Haddad, os outros dois afinaram politicamente.”
Ainda de acordo com o pesquisador, o PSDB não tem força interna que possa deter a ambição de João Doria, que já foi acusado de “traidor” por seu padrinho político, o ex-governador paulista Geraldo Alckmin (PSDB).
“A partir de São Paulo, o Doria está num processo aceleradíssimo de renovação do partido, ao formato dele, que, se não existisse o [partido] Novo, eu diria que ele quer fazer um partido Novo, com um discurso mais liberal, com técnicas de comunicação mais eficiente e modernas. Ele quis dar um tratamento gerencial, deslocando o partido mais para a direita. Me parece muito difícil pará-lo”, afirma Nicolau.
O PSDB saiu da última eleição bem menor do que entrou. Em 2018, os tucanos elegeram 29 deputados federais, a nona bancada da Câmara dos Deputados. No ano de 2014, a sigla era a terceira maior da Casa, com 54 parlamentares. Enquanto isso, nas presidenciais, Alckmin teve o pior desempenho do partido desde a redemocratização, com apenas 4,7% dos votos, terminando em quarto lugar.
Diante do cenário, os antigos caciques do partido não conseguiram um nome que unificasse o tucanato na definição da presidência da legenda, em maio deste ano, e, no embate que se seguiu, assistiram ao ex-deputado federal Bruno Araújo, aliado de primeira fila de Doria, assumir o posto.
Em sinal evidente de provocação, Doria garantiu filiação ao PSDB de um dos principais articuladores de Bolsonaro em Brasília, o deputado federal Alexandre Frota, que foi expulso do PSL e não tardou a escolher o ninho tucano como nova casa.
Ao migrar, Frota saiu disparando contra o presidente e sua família, após suntuoso e raro evento de filiação em São Paulo, na sede dos tucanos. Na ocasião, Rodrigo Maia (DEM-RJ) também esteve no local e foi apresentado como arquiteto da transferência de sigla do ex-ator pornô.
Ato contínuo, Doria tentou atrair a líder do governo no Congresso, a deputada Joice Hasselman, para o PSDB. O passo, dessa vez, foi mal calculado. A parlamentar não aceitou e anunciou sua candidatura à prefeitura de São Paulo pelo PSL, iniciando uma verborragia belicosa não apenas o governador, mas também o prefeito Bruno Covas (PSDB) e até um potencial adversário dentro do PSL, o apresentador José Luiz Datena.
“Como você vai lançar como nome da direita um cara que tem histórico dentro do PT?”, afirmou a parlamentar. O apresentador filiou-se ao PT nos anos 90, quando morava em Ribeirão Preto, mas nunca participou da vida partidária, militou, trabalhou em administrações petistas ou concorreu a cargos públicos pelo partido.
Outro nome cogitado internamente no PSL era do senador Major Olímpio (SP), que teve que se render à volúpia de Hasselmann e retirou a candidatura.
Diante da conjuntura adversa, mesmo em crise com seu ex-vice prefeito, Bruno Covas, Doria se vê hoje obrigado a apostar nele contra Joice.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Fernando Holiday, vereador em São Paulo e fundador do Movimento Brasil Libre (MBL), reconhece a crise da direita, que ele atribui ao fato de seus integrantes não estarem acostumados a governar em regime democrático.
“Agora, em 2019, a direita ficou muito grande. Naturalmente, vão surgindo divisões nesse período. Coisa que a esquerda sempre enfrentou. A direita não estava acostumada com isso, o mais perto que chegamos do poder foi com os militares, quando não havia uma divisão explicita. Então, a direita ainda não sabe lidar com a divergência de quem está de fora do seu espectro político, ou seja, o centro e o centro-esquerda, e muito menos com as divisões internas. Eu acredito que só o tempo resolverá. É um amadurecimento político pelo qual teremos que passar e isso passa diretamente pelo governo Bolsonaro, que é a primeira experiência da direita em ambientes democráticos. Então, é o tempo. A esquerda passou por isso e amadureceu. A direita precisará desse tempo”, afirma Holiday, uma das principais lideranças da direita na Câmara dos Vereadores da capital paulista, que ainda não declarou apoio para 2020, mas que, por ora, diz descartar candidatura própria.
Seja como for, a eleição paulistana vai decidir os rumos da direita no país, segundo acredita a socióloga Esther Solano.
“Por duas questões: primeiro, pela questão de como a direita se posiciona, com essa briga entre o bolsonarismo e essa direita mais light, à lá Doria. Vai ser muito interessante de ver isso. Será que a Joice manterá a postura agressiva do Bolsonaro? Parece que sim. Por outro lado, não sabemos ainda como o Bruno Covas vai se posicionar sobre alguns temas. Por exemplo, como vão tratar das pautas de segurança pública? Mas acho interessante saber como o PT vai se colocar também. O campo petista é uma incógnita em São Paulo, onde eu acho que vai se decidir a política nacional.”
Esquerda
No outro espectro ideológico, os principais partidos de esquerda (PT, PSOL e PCdoB), embora não estejam se atacando, não falam em nome de consenso. Pelo contrário, trabalham com a ideia de candidaturas próprias.
“Teremos uma candidatura própria, é um processo que precisa amadurecer internamente. O PT vai trabalhar com quem se colocou e disse que é candidato. Algumas pessoas, quando consultadas sobre ser candidatos ou não, se retiraram, o [ex-ministro da Educação, Aluzio] Mercadante é uma delas. O [ex-deputado e ex-secretário municipal] Jilmar Tatto, internamente, é quem tem mais força hoje”, afirma Laércio Oliveira, presidente do Diretório Municipal do PT.
Ao contrário de Ester Solano, Oliveira não acredita que, para o partido, o resultado de 2019 em São Paulo seja fundamental para 2020. “Nosso desempenho aqui não costuma ter relação com o cenário nacional. [Fernando] Haddad perdeu a reeleição para o Dória em 2016, por exemplo, mas na eleição para a Presidência chegou ao segundo turno e quase ganhou, superando inclusive o candidato dos tucanos (Alckmin).”
Aliado histórico dos petistas, o PCdoB também terá seu candidato em São Paulo. O nome mais citado até aqui é o do ex-ministro dos Esportes dnos governos Lula e Dilma, o deputado federal Orlando Silva.
Ainda na esquerda, o nome da deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP) ganhou força interna no partido. Em 2018, a parlamentar se elegeu à Câmara dos Deputados com 250 mil votos, votação expressiva para a sigla, que, na última eleição para a prefeitura (2016), lançaram a ex-prefeita Luíza Erundina e tiveram apenas 184 mil votos.
Em descenso de popularidade entre setores da esquerda, a deputada federal Tabata Amaral é apontada como favorita por seu partido, o PDT. A parlamentar ainda tenta recuperar a confiança de parte de seu eleitorado, que se sentiu traído após ela votar a favor da Reforma da Previdência na Câmara dos Deputados. A pedetista ten negado interesse em concorrer.
Mais ao centro está Márcio França, ex-governador do PSB que é nome certo na disputa. Sua candidatura foi confirmada em julho deste ano. Chamado de “comunista” por Doria durante a campanha do ano passado, França é aliado de Alckmin e pode ser uma pedra no sapato nas pretensões de Bruno Covas.