Elias Jabbour rebate artigo de Demétrio Magnolli sobre a China

Atualizado em 21 de outubro de 2021 às 14:20
Demétrio Magnolli
Foto: Reprodução

Por Elias Jabbour 

Realmente, existe uma “China oculta” que paira sobre o pensamento médio no Ocidente, tanto na academia quanto na imprensa. Trata-se da China do “milagre” e de pleonasmos como o chamado “capitalismo de Estado”. Atualmente, a face oculta ganhou os contornos da falaciosa economia doméstica: do “modelo” sustentado pelo endividamento. Em geral, esta visão estreita é resultado do grau de primarismo conceitual e inércia intelectual com que é tratado um fenômeno de tamanha originalidade histórica. Infelizmente, Demétrio Magnoli não foge à regra em sua recente coluna “Uma China oculta”.

O colunista faz alusão ao secretário de Estado dos EUA, A. Blinken, que orientou o governo chinês a “agir responsavelmente” diante da crise da Evergrande. Provavelmente, o sentido da citação era insinuar que os problemas econômicos chineses são mais graves do que aparentam ser. Entretanto, não deixa de ser estranho ancorar-se na autoridade de um país que gerou a crise financeira de 2008, deixando sequelas econômicas e sociais no mundo que persistem até hoje.

O lado oculto da China requer perguntas que ficaram também ocultas na análise. É também de interesse geral saber como os chineses conseguiram gerar 130 milhões de empregos urbanos nos últimos dez anos. Sim, a planificação desse processo que impediu o país de replicar em seus centros urbanos as grandes favelas indianas e brasileiras é algo a ser estudado. Como geógrafo, o professor Magnoli não deveria deixar-se impressionar pelo tamanho do setor da construção civil na China.

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O surgimento de um poderoso setor de construção civil foi responsável pela edificação de 70 milhões de apartamentos apenas no último decênio. O que deveria chamar a atenção não é o tamanho do endividamento da Evergrande, mas como o governo chinês lidou com o problema sem provocar uma crise financeira no país. Foi ocultada a lenta estatização desse setor, que está ocorrendo sem fuga de capitais e sem quebras bancárias. Sem que nenhuma família fique sem o apartamento porque a empresa não entregou.

Já não se pode mais sustentar a falsa noção de que o Japão, os EUA e outros países desenvolvidos com grandes dívidas públicas possam literalmente “quebrar” em suas próprias moedas. Nem o Brasil, com suas reservas cambiais robustas, corre esse risco. A China, muito menos. Para aferir os limites do “milagre chinês”, é bom nos munirmos de algumas informações. A economia chinesa é baseada em 96 grandes conglomerados empresariais estatais e, além dos quatro bancos citados por Magnoli, uma rede de bancos provinciais e municipais de desenvolvimento. Estes criaram moeda suficiente para a construção de, por exemplo, 40 mil quilômetros de ferrovias de alta velocidade nos últimos 20 anos. A China é o país com o maior número de empresas na lista Fortune 500, sendo que 80% delas são estatais. Eis mais uma face da China que se mantém, sem razões objetivas, oculta por aqui.

A China cresce apoiada em ondas de inovações institucionais que, ao longo dos últimos 40 anos, foram moldando o papel do Estado e do setor privado no país. Se o Estado tem sido capaz de coordenar um processo de desenvolvimento único, o setor privado tem se mostrado um interessante suplemento do setor público na economia. Esta China oculta começa uma nova onda inovações institucionais com o intuito de dirimir as contradições surgidas nesse processo. A solução do caso Evergrande é apenas um sintoma deste processo mais amplo no sentido de reconfiguração das formas de propriedade no gigante asiático. Novas formas históricas de propriedade pública estão na ordem do dia em Pequim.

(Texto originalmente publicado em VERMELHO)