O genial romancista e contista mexicano Juan Rulfo cimentou na pedra do tempo duas palavras sobre Julio Cortázar: ele era um bom homem e um bom escritor.
O bom escritor fica por conta do gesto amplo de sua ficção, das alterações que introduziu na engenharia do conto, da sua ousadia em romper com as convenções da linguagem e da sua escrita que prima pelo novo e pelo original.
O bom homem fica por conta de seu humanismo. Cortázar se sacrificou pela justiça abraçando a militância política, amava a revolução cubana, engajou-se na luta pelo fim da ditadura no Brasil, Chile, Uruguai, Bolívia, Paraguai e Argentina e viajou diversas vezes para Nicarágua, apaixonado que estava pela revolução sandinista.
Em 1970 publicou “Literatura na revolução e revolução na literatura”, fruto da polêmica que manteve com Mario Vargas Llosa e Oscar Collazos. No mesmo ano, participou em Paris do seminário “O intelectual e a política”.
Em 73, quando ganhou o Médicis Étranger pelo romance “O livro de Manoel” entregou o dinheiro do prêmio a Rafael Agustin Gumulio da Frente Unificada da Resistência Chilena. Em 74 integra o Tribunal de Russell ao lado de Gabriel García Márquez.
Cortázar não abria mão de suas pesquisas literárias, porém quando soava o botão de alerta, ele não se omitia. Em 1971 quando Fidel Castro fez vista grossa para uma temporada de caça às bruxas em Cuba (o caso Heberto Padilla), o escritor pôs a boca no trombone. Redigiu e divulgou um manifesto porrada cujo título era “A hora dos chacais”.
Leia esse trecho: “De que serve escrever a boa prosa, de que vale expor razões e argumentos se os chacais velam, a manada se atira contra o verbo. O mutilam, o jogam onde querem, deixam de lado o resto, transformam o branco em negro, o sinal de mais vira o sinal de menos, os chacais são sábios nos telex, são as tesouras da infâmia e do mal-entendido(…) Fabricarão mais uma vez a mentira que corre, a dúvida que se instala, gente que abre seu jornal e procura a verdade e se encontra com a mentira maquiada, os bocados prontos, e vai engolindo baba pré-fabricada, merda em pulcras colunas, e há quem acredite e ao acreditar esquece o resto, tantos anos de amor e combate (…) é a hora do Chacal, dos chacais e de seus obedientes: os mando todos à reputa mãe que os pariu e digo o que vivo e o que sinto e o que sofro e o que espero”.
“A hora dos chacais” lhe custou um esfriamento com Cuba. Lendo-o hoje é estarrecedor como as palavras duras de Cortázar se aplicam ao que ocorre no Brasil após a divulgação do documento da CIA confirmando a participação dos Generais Geisel e Figueiredo no extermínio de opositores.
Os chacais stalinistas cubanos e os chacais da imprensa brasileira se utilizam da mesma estratégia, o mascaramento da realidade, a deformação e o oportunismo.
O caso é especialmente vexatório para o autor de “A Ditadura Envergonhada”, “A Ditadura Escancarada”, “A Ditadura Encurralada”, “A Ditadura Derrotada”, pois apesar de suas críticas à violência da repressão aos subversivos é imperdoável a imagem que Elio Gaspari constrói do ditador Geisel enaltecendo seu caráter humanista, general civilizador, bom coração.
Esperamos que o jornalista tenha a humildade de fazer uma errata para a obra. Não fica bem passar o recibo de que compôs o elogio a um Presidente sanguinário, um facínora torturador de crianças e assassino de heróis brasileiros que deram suas vidas em nome da justiça social e da democracia.
Antes tínhamos convicções, agora chegaram as provas. Ainda dá tempo de Gaspari pedir desculpas e sair de cena. Caso contrário, corre o risco de ser visto pelas gerações futuras como o decano dos chacais da imprensa tabajara.