Elio Gaspari está tomando uma sova na internet por conta do documento da CIA relatando que Geisel e Figueiredo coordenaram a execução sumária de opositores do regime.
Ele estava disponível desde 2015 no site oficial do Departamento de Estado dos EUA.
Foi descoberto pelo professor de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas, Matias Spektor, colunista da Folha, e divulgado na quinta-feira (10).
“No dia 1° de abril (de 1974), Geisel disse ao general Figueiredo que a política (de extermínio) deveria continuar, mas que devia tomar muito cuidado (sic) para ter certeza (sic) de que só perigosos (sic) subversivos fossem executados”, diz o documento.
O nome de Elio chegou aos trending topics do Twitter.
O colunista da Folha e do Globo seria responsável por acobertar os crimes de Geisel e vendê-lo como o arquiteto da distensão, juntamente com Golbery do Couto e Silva, seu chefe da Casa Civil, inventor do SNI.
Segundo essa tese, Geisel eliminou a linha dura, representada por Sylvio Frota e Ednardo D’Ávila Mello, comandante do II Exército, sob cuja jurisdição o DOI CODI matou Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho.
O quarto volume de sua antologia — são cinco — sobre a ditadura trata desse período.
É certo que Elio trai uma simpatia pelos personagens. Chama-os, a Geisel e Golbery, de “O Sacerdote” e “O Feiticeiro”, apelidos francamente idiotas e reverentes.
Ele teve acesso ao acervo de Golbery e de seu secretário Heitor Aquino Ferreira, um tipo que era tratado a pão de ló na Editora Abril no tempo em que Elio era diretor adjunto da Veja — e depois também.
Gaspari era amigo de suas fontes e isso grita em cada página. Faz um esforço enorme para humanizar monstros.
Você chega a sentir uma certa piedade pelo fato de Geisel ter perdido um filho adolescente. O mesmo sujeito que depois mandaria filhos de outras pessoas para a morte.
Mas quem leu o livro sabe que não é verdade que Gaspari tenha omitido o papel de Ernesto Geisel nos assassinatos do estado.
“A Ditadura Derrotada” fala de uma conversa gravada de Geisel em 16 de fevereiro de 1974, um mês antes de assumir a presidência (e menos de dois meses após aquela da CIA).
“Acho que a subversão não acabou. Isso é um vírus danado que não há antibiótico que liquide com facilidade. Está amainado. Está resolvido. Você vê, de vez em quando, há uma articulação, morre gente ou é gente presa, ele continua a se movimentar”, diz ao general Dale Coutinho, que estava sendo convidado para o Ministério do Exército.
“O negócio melhorou muito. Agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando nós começamos a matar. Começamos a matar”, afirma Coutinho.
Geisel: “Porque antigamente você prendia o sujeito e ia lá para fora (…). Ó Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas acho que tem que ser.”
Geisel lembra que, semanas antes, foi “pego e liquidado” Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, líder da guerrilha do Araguaia.
“Nós não podemos largar essa guerra. Infelizmente nós vamos ter que continuar. É claro que vamos ter que estudar [algum ou novo, a gravação fica inaudível] processo, vamos ter que repensar…”, declara Geisel.
Não precisa desenhar.
No livro fica claro que é obra do governo Geisel o recurso ao termo “desaparecimento”.
De 1964 a 1970, os ‘desaparecidos’ somam nove, e os mortos com cadáver são 87, contabiliza Gaspari. Em 74, há 52 mortos e 52 ‘desaparecidos’.
Ele disseca a palavra: “Englobava todos os cidadãos capturados cujos cadáveres sumiam sem ficar vestígio. Resultava da conjugação da política de extermínio com a clandestinidade do porão”.
“Clandestinidade, no caso, não significava paralelismo, autonomia ou descontrole. Os assassinatos eram praticados pela máquina do Estado, com beneplácito da hierarquia. Eram clandestinos, porque, dentro dela, ocultavam-se”, conclui.
O memorando da CIA não entrou na obra porque foi liberado agora. São coisas complementares.
Elio Gaspari, o protótipo do jornalista “isentão” — isentão de enorme talento, mas cujos truques são manjadíssimos —, pode ser acusado de qualquer coisa, menos de ter sonegado a informação de que Geisel, seu déspota esclarecido de cabeceira, estava no centro da política de extermínio de seu governo.