Publicado originalmente no Plural Curitiba
Por Jess Carvalho
No dia 25 de abril, o professor Sergio Ubiratã foi à Central de Flagrantes de Curitiba. Aos 61 anos, com 1,75m e 70kg, ele tinha lesões espalhadas pelo corpo e sangue esguichado na lataria do carro. Exames feitos dois dias depois, no Hospital XV, atestaram múltiplas contusões e ferimentos, mordedura humana, uma costela fraturada e traumatismo craniano leve. Apesar disso, o Boletim de Ocorrência (B.O.) registrado naquele dia descreve sua condição física como “íntegra”. O autor da agressão é um vizinho dez anos mais jovem, significativamente mais alto e forte: o policial civil Gilnei Hartleben Diel, que no B.O. aparece como “vítima”.
Sergio e Gilnei são vizinhos desde 2013. Eles vivem em um condomínio no bairro Santa Cândida, em Curitiba, a três quadras da sede da Polícia Federal. Já tiveram uma boa relação, mas a convivência começou a ficar conflituosa em 2016, época do impeachment de Dilma Rousseff, por divergências políticas. “A gente tinha uma convivência interessante, um frequentava a casa do outro raramente, mas frequentava. Ele é pai de duas crianças pequenas que tinham uma relação muito boa com a minha neta, que vive conosco. Mas devido à questão ideológica, essa relação foi se deteriorando”, conta o professor.
“Ele já vinha me provocando em algumas oportunidades. Eu faço parte de um bloco carnavalesco, o Garibaldis e Sacis, e acredito que ele já tenha me visto fantasiado, então mexia comigo dizendo que eu era a rainha da bateria e essas coisas”, continua. “No domingo da agressão, o que aconteceu foi que ele entrou no condomínio, me viu na janela e começou a soltar beijinhos e a me chamar de bicha. Eu simplesmente fiquei ouvindo aquilo e deixei.”
Na versão de Sergio, o policial entrou em casa. Em seguida, ele saiu em direção ao seu carro, que estava estacionado em frente ao seu imóvel. Foi quando aconteceu o confronto. “Eu saí pela porta e ele já veio me xingando e me agredindo. Ele é bem maior que eu e é um policial, achei que podia até estar armado. A única coisa que eu fiz foi tentar me defender. Ele me bateu muito, até que um vizinho pulou e apartou. E aí eu entrei e liguei pro Felipe, meu advogado, que chamou a polícia.”
Apesar das lesões, a briga acabou ficando em segundo plano para o professor, tamanha a dor de cabeça que veio a seguir. “Durante o encaminhamento na delegacia, apareceu uma faca fake, disseram que eu estava armado, mas é uma mentira. A única coisa que eu tentei fazer foi jogar um jarro, um pequeno jarro de plástico que nem bateu nele direito.”
A versão levada ao B.O.
Quando recebeu a chamada de seu cliente, Felipe Lopes ligou para o 190 e correu para o local do crime. “A Polícia Militar chegou e decidiu nos conduzir para a Central de Flagrantes. Chegando lá, me deu um chá de cadeira de duas horas, eu fiquei inacessível ao Sergio. Quando eles me chamaram pra dentro da delegacia, tinha um B.O. que apontava a existência de uma faca que teria sido recolhida pela PM, mas que não foi objeto de atendimento da ocorrência lá na hora. O B.O. também descrevia o Sergio, que estava completamente machucado, como autor do fato e colocava o policial civil como vítima de agressão e ameaça”, relata o profissional.
Ele reitera que na delegacia foram desrespeitadas todas as suas prerrogativas de advogado e a seu cliente, foi negado o direito de registrar um novo boletim de ocorrência colocando o policial como agressor.
Tive acesso ao B.O. A descrição sumária da ocorrência é a seguinte:
“Equipe policial militar foi acionada via Copom para prestar atendimento à ocorrência na qual teriam dois indivíduos em vias de fato no condomínio. Chegando no local foi identificado o sr Gilnei Hartleben Diel, que teria entrado em discussão e posteriormente em luta corporal com seu vizinho Sergio Ubiratã Alves de Freitas, por motivos políticos. Gilnei informa que Sergio após proferir ofensas e ameaças, tentou lhe agredir com uma faca (objeto esse que foi apresentado a equipe policial e entregue a central de flagrantes.) onde conseguiu se desvencilhar e desarmar Sergio, em seguida entrando em luta corporal, em que certo momento Sergio pegou um vaso e tentou lhe acertar. Relata ainda que tem alguns processos anteriores contra Sergio. Sergio informou que após ser provocado por Gilnei vieram a discutir e entrar em luta corporal, e que em determinado momento pegou um vaso para tentar se defender tentando acertar sem êxito Gilnei. No local se fez presente Felipe Edurardo Lopes advogado de Sergio, que o acompanhou ate a elegacia. Na delegacia a equipe do Alpha do Cope acompanhou e ouviu o sr Gilnei pelo fato de ser policial civil. Resalta ainda que toda a ocorrência foi acompanhada pelo oficial cpu 20º bpm 2º ten. Zeck e seu motorista sd. Natan. Não foi necessário o uso de algemas pelo fato dos envolvidos se deslocarem por meios próprios com escolta policial. (sic)”
Na relação de objetos, consta uma arma branca: “01 faca de cozinha serrilhada, com cabo de madeira”. O caso foi atendido pelo delegado Pedro Maomé Machado, que estava de plantão. Nas redes sociais, ele se posiciona abertamente como bolsonarista.
Procurei o delegado via assessoria da Polícia Civil duas vezes: a primeira foi no dia 17 de junho, quando expus a queixa de Sergio e pontuei que Pedro Maomé Machado partilha da visão política de Gilnei. Perguntei se ele gostaria de se pronunciar, mas recebi uma nota protocolar que dizia: “A Polícia Civil do Paraná informa que os fatos ocorreram no dia 25 de abril deste ano, conforme boletim confeccionado pela Polícia Militar. No dia dos fatos, o caso foi atendido pela Central de Flagrantes de Curitiba e lavrado o termo circunstanciado. Este já foi encaminhado ao Poder Judiciário com audiência entre as partes já realizada no dia 16 de junho”. Na sexta (25), me dispus a ouvir o delegado novamente, até o fechamento. Desta vez, a assessoria respondeu que ele “não tem agenda para entrevista”.
A defesa do professor afirma que ele não avançou sobre o vizinho com uma faca e que a polícia não tomou o devido cuidado com a arma para preservar as investigações. “Eu só tive acesso ao Sergio por volta das nove da noite. Pouco antes disso, chegou a equipe do COPE e aí apareceu essa faca. Essa equipe só foi por conta d’ele (Gilnei) ser policial civil. O instrumento foi jogado em cima das mesas lá. Não é nada daquilo que a gente vê nos filmes, a arma não chegou no saco plástico. Simplesmente jogaram a faca em cima da mesa”, diz Felipe.
Sergio garante que nunca viu a faca antes e questiona: “O que a gente tem hoje é um caso que envolve a própria credibilidade das forças de segurança do Estado. Qualquer agente pode plantar uma prova e aí você fica refém dessa situação?”
De acordo com o professor, Gilnei tem câmeras apontando para a frente de sua casa e elas certamente registraram a agressão, mas as imagens não foram apresentadas até o momento. A reportagem não conseguiu fazer contato com o vizinho que apartou a briga, única testemunha ocular do fato. Ele também não falou com as autoridades. Sergio e Gilnei fizeram exames de corpo de delito no Instituto Médico Legal (IML), mas os laudos também não estão disponíveis ainda.
Como o crime registrado – ameaça – é de menor potencial ofensivo, o Termo Circunstanciado (TC) seguiu para o Poder Judiciário. A defesa de Sergio fez dois pedidos ao júri: a retificação do B.O. e o resultado do exame de lesões corporais. A audiência de conciliação entre as partes aconteceu na semana passada. O advogado de Gilnei apresentou uma proposta de respeito mútuo, que foi prontamente negada por Sergio, representado por Felipe. Eles preferiram seguir em frente para que sejam analisados os pedidos feitos no processo.
Injúrias
Liguei para Gilnei. Ele – um policial civil com dez anos de experiência em investigação – me disse que, desde 2016, Sérgio proferiu diversas “provocações verbais” pela janela de casa e chegou a injuriá-lo centenas de vezes nas redes sociais. “A certa altura, eu printei algumas coisas e fui conversar com ele. Eu disse: ‘por que que você está fazendo isso aí comigo? Eu nunca me posicionei, eu respeito a tua ideologia, eu só tenho outra.’ No mesmo dia, ele continuou a me injuriar pelo Facebook. E aí eu entrei com um processo contra ele, só que por uma inépcia da minha advogada – ela teria que ter feito uma queixa e acabou fazendo uma representação – isso aí foi arquivado.”
Sobre a briga, ele foi pontual: “Ele continuava me provocando, me provocando e tal, aí nós acabamos desencontrando ali. Ele veio e me jogou um vaso de flor que acabou pegando no meu dedo. E como eu consegui me esquivar desse vaso, ele puxou uma faca serrilhada que ele usava acho que para jardinagem – estava no parapeito dele – e aí veio pra cima de mim. Eu consegui retirar a faca dele, apesar de ter sofrido um corte no braço e tal. E aí a gente acabou, né, entrando em luta corporal ali, até por função disso aí. (…) Eu tive várias lesões, tá? Elas estão laudadas lá no IML, mas no dia eu acabei não tirando foto. Eu fiquei totalmente arranhado, com lesões nas pernas, no braço, corte no braço.”
Pedi para ver os posts injuriosos, mas o policial se recusou a me enviar sob a justificativa de que seriam muitos: 180 a 200 publicações. Em seguida, falou que os prints estavam “oficialmente” registrados em três atas notariais disponíveis em um cartório de Curitiba. Fui atrás dessas certidões e me deparei com 23 prints de postagens políticas de Sergio e a transcrição de uma ligação telefônica.
Alguns dos posts que constam nas atas são direcionados à polícia, outros provocam alguém que Sergio chama de “vizinho”, “canalha” e “imbecil”. Por exemplo: “E aí, vizinho… como era mesmo? Moro livrai-nos do mal. Era isso? Kkkkk imbecil”, ele provoca numa publicação do dia 22 de janeiro de 2019. O nome de Gilnei não é expressamente mencionado nas publicações.
A ligação registrada é do dia 8 de outubro de 2018. Quem atendeu foi a neta de Sergio, que passou o telefone para o avô. Durante 8 minutos e 51 segundos, Gilnei recitou postagens de Facebook, fez menção à vez que teria ajudado a esposa de Sergio, que estaria passando mal, e cobrou respeito e gratidão dos vizinhos, além de uma retratação pública. Confira alguns trechos da conversa:
Gilnei: Sergio, esses dias tava olhando, assim na…. na rede social e aí eu vi uns ‘posts’ teus a respeito de mim e da minha família… assim
Sergio: família?!
Gilnei: não, família sim. Aí eu queria entender por quê… por exemplo, aqui uma: “aqui jaz a sanidade humana”
Sergio: é… aqui jaz… com relação a isso aqui…
Gilnei: tá, mas eu acho que assim… acho que você tá falando de mim, da minha esposa, dos meus filhos….
Sergio: não tô falando de você, Gil, tô falando de todos que assumem determinada opção política.
(…)
Gilnei: pois é, mas o o que que tu, o que que assim, Sergio…. assim, me desculpa, o que que tu tem na tua cabeça, cara???
Sergio: assim… é o seguinte
Gilnei: eu te desrespeitei?
Sergio: não, de jeito nenhum…
Gilnei: eu alguma vez te falei: ah você é um pão com mortadela… você é um comunista safado?
Sergio: isso pra mim não é agressão…
Quanto ao processo mencionado por Gilnei, apurei que de fato foi aberto e arquivado porque os prazos e formalidades legais não foram respeitados pelo próprio autor. Não tive acesso ao conteúdo da denúncia, já que correu em segredo de justiça, a pedido de Gilnei.
Perguntei ao advogado de Sergio sobre esse processo. Ele me respondeu: “Se ele fizesse acusações efetivamente sérias, teria dado outro tratamento na justiça. Fazer boletim de ocorrência qualquer um faz, mas bancar um processo até o final, isso não é pra qualquer um.”
Felipe ainda pontuou que condutas difamatórias não justificam a agressão perpetrada por um policial contra um idoso: “Então, discussões políticas de rede social se respondem com agressão violenta? Me parece que não.”
A entrevista com Gilnei foi curta. Antes de desligar, ele me disse: “Tá, Jéssica, mas assim, volto a te dizer: eu não autorizo a divulgação do meu nome. Por favor, senão nós vamos ter outro problema. Eu não quero ter outro problema”. Em seguida, ele me pediu, via WhatsApp, para retornar a ligação, então me perguntou se eu estava falando de um telefone pessoal e qual era a minha função no jornal.
Apesar do pedido, em conversa com a edição, optamos por não ocultar o nome por três razões: não há impedimento legal; a informação é de interesse público, uma vez que Gilnei ocupa um cargo na segurança pública; e mencionar apenas o nome de Sergio nos pareceu bastante desequilibrado.
“Processo de intimidação”
O caso chegou à Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Paraná (ALEP), que decidiu, por unanimidade, acionar o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Paraná, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). “A nossa preocupação é que casos como esse venham a se repetir se não forem tomadas providências”, afirma o deputado Tadeu Veneri, presidente da Comissão.
“No relatório que fizemos há um pedido de providência com relação ao tratamento que foi dado pela Polícia Civil e também pela Polícia Militar, porque houve um isolamento do Sergio, que é o reclamante, durante o período em que ele faria o depoimento. Depois apareceu uma faca – e o Sergio diz que essa faca foi trazida por dois policiais e uma policial do COPE”, detalha Veneri.
“Os policiais civis e do COPE tiveram acesso à sala onde Sergio estava aguardando, inclusive o próprio policial que o agrediu, uma coisa absolutamente fora de contexto, né? Se você foi agredido por alguém, imagine estar numa sala e de repente chegar o agressor, tomar café, bater papo com todo mundo, depois chegarem mais amigos do agressor… É óbvio que tudo isso aí é um processo de intimidação”, opina. “A OAB também será acionada porque em certo momento o advogado do Sergio foi impedido de acompanhá-lo, coisa que é prerrogativa do advogado.”
O deputado ainda questiona a presença do Centro de Operações Policiais Especiais (COPE) durante o atendimento da ocorrência. “É claro que nos interessa saber qual é a posição do secretário de segurança sobre isso. Não é possível que a corporação faça uma cobertura do caso como se fosse uma agressão à própria corporação. Primeiro: a briga aconteceu num período em que o policial não estava em horário de trabalho. Segundo: foi entre duas pessoas sem que houvesse interferência de uma terceira. Terceiro: nós entendemos que agressões como essa têm que responder civilmente.”
O Ministério Público do Paraná informou que o caso “não é exatamente área de atribuição do Gaeco”, mas confirmou que recebeu as informações sobre o fato. A Polícia Civil do Paraná acrescentou que “administrativamente, a petição da defesa do noticiado chegou na Corregedoria-Geral no dia 10 de junho”. Desta forma, “a investigação preliminar está em tramitação na Corregedoria de Assuntos Internos.”