Em Minas Gerais, a “Cidade dos Loucos “ era campo de extermínio; veja “Holocausto Brasileiro”

Atualizado em 23 de julho de 2024 às 20:56
Cena do filme “Holocausto Brasileiro”

“Todo mundo deve inventar alguma coisa, a criatividade reúne em si várias funções psicológicas importantes para a reestruturação da psique. O que cura, fundamentalmente, é o estímulo à criatividade.” Assim, Nise da Silveira, a revolucionária médica e psiquiatra vanguardista, projetava suas pesquisas. Ela criticava tratamentos violentos como o eletrochoque e a insulinoterapia. Introduziu, em nosso país, tratamentos que colocavam os pacientes em contato com expressões artísticas e animais domésticos. Em resumo, tudo que foi negado aos internos do Manicômio Colônia, Barbacena – MG, durante décadas a fio. Um campo de concentração para depósito e, na pior das análises, extermínio e higienização da sociedade para com loucos, pobres, negros e desajustados.

Esse é o tema do documentário “Holocausto Brasileiro” (2016), disponível no Youtube, com a direção da jornalista Daniela Arbex, embasada no seu livro publicado sob o mesmo título, lançado em 2013.

Através da narrativa de poucos sobreviventes do genocídio, fotografias, trechos de filmes recuperados dos anos 60 e 70, onde se desvendam histórias perdidas ou ignoradas, o documentário revisita a tristeza e o sofrimento vivenciados pelos moradores do local em condições sub-humanas. Lágrimas e arrepios se manifestam livremente ao longo das imagens, muito bem dispostas em edição sensível, em um panorama de abandono absurdo nas sequências documentadas. O Hospital Colônia de Barbacena foi um hospital psiquiátrico fundado em 12 de outubro de 1903 na cidade de Barbacena, Minas Gerais. Fazia parte de um grupo de sete instituições psiquiátricas edificadas na cidade que, segundo alguns, recebeu o epíteto de “Cidade dos Loucos” por esse motivo.

A história do Colônia, o maior hospital psiquiátrico de Minas Gerais, que teve em sua origem local para abrigar a elite mineira em seus “desajustes dos nervos” antes de virar um depósito humano, onde mais de 60 mil pacientes vieram a óbito. Se não morriam de doenças proporcionadas pelo hospício, faleciam pela invisibilidade. Pior, as mortes eram bem-vindas, já que geravam lucros ao ambiente hostil. Entre 1969 e 1980, data de fechamento da instituição, 1.853 corpos de pacientes do manicômio foram vendidos para dezessete faculdades de medicina do país.

O eletrochoque e a sedação indiscriminadamente aplicados aos internos resultavam em quadros crônicos irreversíveis. Entre pavilhões que chegaram a abrigar 2 mil mulheres e homens, existia uma parte do prédio destinada às crianças com síndromes psíquicas ou físicas, que as famílias utilizavam para as apartar do convívio em sociedade, engrossando o caldo no “Caldeirão de Abandono” que se transformou a instituição.

Na mesma linha de transformação da forma de encarar e tratar as limitações e transtornos da psique, o psiquiatra italiano Franco Basaglia tinha como ideal a devolução da liberdade aos internos do hospital psiquiátrico após tantos anos de clausura. Para que essa liberdade fosse possível, esses pacientes deveriam retornar à sociedade, à cidade.

Um retrato muito tocante e sincero em jornalismo investigativo, o documentário nos leva às trevas, tentando dar luz a essa tragédia. Os manicômios em geral sempre foram destinados a essa função exclusivista de higienização social. Foi uma bandeira que demorou muitas décadas para ser vista e respeitada, a partir dos ensinamentos de Nise da Silveira e do italiano Franco Basaglia, da luta fundamental antimanicomial no Brasil e no mundo.