Publicado originalmente em “Jacobin Brasil”
Stefani Costa é jornalista e imigrante brasileira em Portugal. É fundadora da Hedflow, escreve no Portal Sapo e correspondente internacional na revista O Sabiá.
O aumento do custo de vida e as “reformas” do governo vêm retirando direitos da classe trabalhadora portuguesa e imigrantes superexplorados – fazendo com que mulheres latino-americanas sejam duramente atingidas pela xenofobia, machismo e inflação, mas elas já estão se organizando para contra-atacar.
A situação de fragilidade que atinge uma parcela significativa de brasileiras em Portugal vem sendo agravada no limiar do insustentável. Diante do aumento no custo de vida, das falhas nos cumprimentos de acordos bilaterais e da falta de políticas públicas às comunidades de imigrantes, a visita do presidente Lula durante a cúpula luso-brasileira (de 22 a 25 de abril) torna-se cada vez mais necessária e urgente.
Evonês Santos, coordenadora do Comitê Popular de Mulheres, ligado ao Núcleo do Partido dos Trabalhadores em Lisboa, fez um chamado para que todos e todas marchem em defesa dos direitos das mulheres imigrantes neste mês de março. A assistente social afirma que a crise econômica e os baixos salários têm impactado a sociedade lusitana como um todo. Mas, para aquelas que decidiram emigrar, a gravidade é muito maior.
“Nós vivemos com algumas limitações, principalmente os imigrantes que estão enfrentando o processo de regularização de documentos. Isso faz com que essas pessoas não tenham acesso aos apoios de sobrevivência e auxílio alimentar mesmo pagando impostos ou contribuindo com a segurança social”, explica Evonês, que vive em Portugal há 20 anos.
“A situação de sofrimento das mulheres (que compõem a maior parte da população imigrante brasileira), é muito mais alta.”
Ao compreender a difícil realidade em que se encontra inserida, Priscila Valadão, 42, também faz o alerta. Vivendo em terras lusitanas há 7 anos, ela conta que quando chegou ao país sofreu com a condição de uma pessoa que migrou sem documentos, mas que conseguiu depois de 6 meses se inserir no mercado de trabalho. “Vi o aumento dos salários acontecer. A gente tinha muito mais condições de habitação e sobrevivência básica naquela época, apesar de ser muito longe do desejável”, revelou.
Na recente mudança do Porto para Lisboa, a assistente de call center ainda não teve como trazer os três filhos porque só consegue viver em um quarto, na casa de uma amiga residente na periferia da cidade. Diferente do tempo em que escolheu Portugal para construir uma vida, Priscila conta que agora os salários (muito baixos) já não respondem às necessidades da população, que segue tentando lidar com o custo de vida subindo vertiginosamente em todos os cantos do país.
“A alimentação aumenta todos os dias em detrimento do enriquecimento de pessoas que já são ricas ou super ricas, enquanto eu me sinto cada vez mais empobrecida por não haver políticas públicas de controle dos preços. Sei que essa realidade também se estende aos portugueses. Entretanto, para nós imigrantes não existe uma retaguarda como, por exemplo, voltar para a casa dos pais. Também vejo que as condições das mulheres são bem diferentes no sentido das redes de apoio, que poderiam estabelecer soluções eficientes no local que essas trabalhadoras escolheram viver.”
Voltar ao Brasil?
O aumento de pedidos de apoio e repatriamento entre 2021 e 2022 revela a degradação entre os cidadãos imigrantes. Porém, segundo Vasco Malta, chefe de Missão da Organização Internacional para as Migrações em Portugal (OIM), a situação de sofrimento das mulheres (que compõem a maior parte da população imigrante brasileira), é muito mais alta. Dos 92% de solicitações, Vasco explica que 53% vêm de mulheres e que uma fração considerável delas se encontra em situação irregular no país.
Segundo Evonês, o Comitê Popular foi criado como um espaço amplo de diálogo e resposta dentro da igualdade de gênero, dando respaldo às demandas gritantes das mulheres brasileiras em Portugal. Mesmo com ligação partidária, a fundadora do movimento explica que não há restrições para aquelas que militam em outros partidos ou organizações.
“Desde que haja uma afinidade sobre as questões básicas dessas mulheres, todas são bem-vindas a colaborarem. Nosso objetivo é sensibilizar representantes de ambos os países para que eles respondam as carências dessa parcela de estrangeiros que é enorme, com mais de 270 mil residentes”, reforça.
Há um ano morando em Lisboa, Kiara Veras, 38 anos, diz que se deparou com todo tipo de desrespeito e violência e que isso ainda a assusta e causa muito sofrimento. Em pouco tempo, a gestora administrativa percebeu a urgência na criação de políticas de cooperação específicas entre Brasil e Portugal no intuito de combater essa hostilidade do machismo estrutural praticada contra mulheres brasileiras.
“Acredito que essa visita do presidente Lula durante a cimeira de abril seja de grande valia, pois políticas públicas para mulheres imigrantes já foram pensadas e estão sendo debatidas. Essa é a grande oportunidade de incluir o governo brasileiro nesse diálogo”, afirma.
“Os relatos de sofrimento daquelas que se encontram desamparadas pelo poder público faz com que o 8 de março eleve o grito em um país onde as taxas de violência doméstica e feminicídio também são preocupantes.”
Para a socióloga e artista Maíra Zenun, mesmo levando uma vida simples, a situação está impossível. E essa realidade se agrava quando fazemos o recorte migratório. “Além das rendas caríssimas, comprar um imóvel é quase impossível, especialmente aos imigrantes que não têm papel jurídico para conseguir um empréstimo bancário neste país”, pontua.
Pedro Prola, coordenador do PT em Lisboa, acredita que Lula deve assinar acordos sobre direitos dos imigrantes durante sua visita oficial a Portugal. Contudo, é sabido que o Tratado do Porto, acordado no ano de 2000, já prevê condições de igualdade entre brasileiros e portugueses, incluindo crédito. Porém, a reclamação da comunidade é que as instituições financeiras não têm respeitado essas condições.
Segundo Pedro, que também é jurista, há uma sinalização entre os dois países para garantir não só um acordo de igualdade de direitos. “Nós buscamos um conjunto de outras pautas, como reconhecimento de títulos profissionais, acesso à segurança social e acesso à saúde pública, pautas concretas na vida das pessoas que trabalham e contribuem para os países onde vivem”, afirma.
Dor e empatia
O último relatório feito pela Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), do Observatório das Migrações, revelou que a comunidade brasileira é a que mais apresenta queixas contra xenofobia e racismo, representando 26,7% do total. Todavia, quando fazemos o recorte de gênero, 45,9% das denúncias são de mulheres. “Nós temos um rótulo aqui que diminui a nossa credibilidade e isso, infelizmente, está enraizado na sociedade portuguesa”, lembra Evonês.
Um estudo realizado em 2022 pela ONG Migra Myths, em parceria com a Casa do Brasil de Lisboa e o Governo de Portugal, indica que 58,2% dos alvos de discursos de ódio atingem as brasileiras. “Nos casos de violência doméstica, por exemplo, as mães são sempre muito penalizadas, com uma visível preferência dos tribunais em dar ganho de causa quando a nacionalidade do progenitor é portuguesa”, revela a dirigente do Comitê Popular de Mulheres.
Os relatos de sofrimento daquelas que se encontram desamparadas pelo poder público faz com que o 8 de março eleve o grito de desespero em um país onde as taxas de violência doméstica e feminicídio também são preocupantes. Em 2022 as ocorrências registradas pela PSP e GNR (policias portuguesas) aumentaram 14% em comparação com o ano anterior, num total de 30.389 em uma média de 82 queixas diárias. Foram apontadas ainda 28 vítimas mortais, incluindo 4 crianças.
No meio desse ciclo vicioso de sofrimento, a solidariedade feminina também é capaz de unir nacionalidades diferentes em uma luta que pertence a todas.
É o caso da brasileira Adélia Vasconcelos, de 43 anos, que ao ser questionada sobre como o aumento no custo de vida tem afetado a sua realidade de mulher imigrante, lembrou, aos prantos, da amiga portuguesa que vive o drama de ter que regressar com os dois filhos para a casa do homem que tentou tirar a sua vida há dois anos:
“Neste momento, ela está voltando para a casa do ex-marido porque a segurança social está a coagindo, dizendo que se ela não sair do local disponibilizado de forma provisória, perderá a guarda das duas crianças. E isso é um absurdo! Eu nunca vi tanta injustiça na minha vida! Estou chorando agora, mas já chorei muito mais, angustiada, pensando: ‘essa mulher vai voltar para quê?! Para talvez ser assassinada?!”
Mulher, negra, imigrante e mãe solo, a pedagoga Adélia, que reside em Portugal por mais de 20 anos, relata que já enfrentou de tudo, mas que os dois últimos anos têm sido os mais difíceis de sua vida. Devido à crise de habitação, ela se viu obrigada a viver em um quarto com a filha pequena e outras pessoas. “Eu nunca tinha passado por isso e é por causa do aumento dos preços. Eu não consigo ganhar 700 euros e pagar 1200 em uma casa. Não tem como explicar isso. A forma em que se vive agora não é correta, porém é do jeito que a gente consegue”, afirmou a pedagoga durante a manifestação promovida pelo Vida Justa, movimento organizado nos bairros periféricos da grande Lisboa.
“E como toda luta presente na bruta realidade capitalista, os recortes de classe também revelam problemas que ultrapassam as questões materiais dessas mulheres.”
Para Raquel Antunes, 32 anos, o olhar feminino ao crescente número de ataques xenófobos contra imigrantes latino-americanas acaba fazendo a diferença na hora de analisar cada caso. Para a geógrafa, também existe uma ligação direta do aumento no custo de vida com o fato da mulher ser do Brasil ou de algum outro país do Sul Global. “A percepção da discriminação é imediata. Observar a fragilidade do outro é importante, porque quando é com a gente, principalmente se somos brancas, as coisas são amenizadas. No entanto, ao se observar o próximo, o racismo e a xenofobia ficam gritantes com tanto incômodo e desespero”, conta ela.
E como toda luta presente na bruta realidade capitalista, os recortes de classe também revelam problemas que ultrapassam as questões materiais dessas mulheres. Vivendo em Portugal há um ano e quatro meses, a estudante de psicologia Keila Campos, de 28 anos, afirma que a pobreza também influencia na saúde mental:
“O que a gente não costuma pensar é que a política está em tudo, na comida que a gente não come e nos aluguéis que a gente não consegue pagar. Me mudei recentemente para Lisboa e foi um momento de custo muito alto, além de uma dificuldade absurda para achar um quarto minúsculo onde mal cabe uma cama. Tudo isso impacta na nossa qualidade de vida e bem-estar.”
Brasileiras solteiras não têm vez
Para Lina Teixeira, de 44 anos, existe ainda a diferença de tratamento entre mulheres solteiras e casadas. Vivendo há 9 anos em Portugal, a jornalista lembra que sofreu xenofobia desde que chegou e que sempre teve muita dificuldade em encontrar uma casa pelo fato de ser brasileira, estudante e viver sozinha.
“Eu sentia claramente o preconceito quando chegava em uma imobiliária e era tratada de forma diferente das amigas que vivem com seus companheiros. Isso sempre aconteceu, mas agora a situação piorou. Me recordo que cheguei a ligar para um anúncio de uma casa e, quando cheguei ao local, perguntaram se eu era mesmo estudante. Foi constrangedor!”
Uaiana Prates, de 40 anos, professora de matemática e estudante de pós-doutorado, diz que a sua chegada a Portugal, em 2017, foi muito trágica. Ela relembrou do período em que chegou a visitar uns 20 apartamentos para poder alugar um. Quando ligava em anúncios recém publicados pelas imobiliárias os corretores mentiam que o imóvel já estava arrendado só de ouvirem o sotaque brasileiro.
“Fora a quantidade de empecilhos que colocam para o aluguel. Uma vez, ao pegar um Uber e explicar o caso de um contrato abusivo que tive que aceitar, a senhora que estava dirigindo disse que eu precisava entender que hoje em dia pessoas chegam do Brasil fazendo doutorado, mas antes não tinham nenhum tipo de ‘instrução’. Coisas desse tipo, extremamente arrogantes e agressivas, que ouvimos diariamente. E mais, mesmo passando por tudo isso, as coisas nunca melhoram para nós. Pelo contrário, ficam piores.”
Como se já não bastassem tantas “pedras” nos caminhos dessas milhares de mulheres imigrantes, ainda sobra um largo espaço para o cultivo do discurso de ódio. Priscila Valadão sinaliza que, mesmo diante das condições de trabalho e salários baixos, a extrema-direita portuguesa está atacando o ponto mais fraco da “teia social”: os imigrantes mais pobres.
“Infelizmente a gente volta ao discurso nazista, pois é como se os imigrantes estivessem tirando o que o português poderia ter, enquanto, na verdade, a gente contribui igualmente ou até mais. Para nos ‘regularizarmos’ precisamos pagar a segurança social, assim acabamos recebendo uma conta muito alta por sermos discriminados dia após dia com falsas justificativas de que estamos tirando a comida do prato de quem nasce aqui, quando sabemos que quem faz isso são os bilionários que estão aí cada vez mais ricos enquanto o povo trabalhador continua na penúria.”
Por uma vida justa
Parte de todos esses depoimentos foram recolhidos durante o ato organizado pelo movimento Vida Justa, que reuniu no final de fevereiro mais de 10 mil pessoas em marcha até a Assembleia da República. Segundo Rui Estrela, um dos líderes da iniciativa, esse foi o primeiro passo público em grande escala organizado pela classe trabalhadora em Portugal.
“Queremos ser as primeiras vozes ouvidas na criação de soluções que abrangem as pessoas que não têm salários para conseguirem acompanhar a inflação, nem para manterem ou até mesmo terem acesso à habitação depois de seus contributos à sociedade enquanto proletários. É justo que ‘vivam’, e não que apenas ‘sobrevivam’. Essa é a pedra de lançamento desse movimento.”
Para Evonês, outro evento ligado ao agravamento da situação está associado à guerra na Ucrânia:
“Estou aqui há 20 anos e nunca vi uma subida tão rápida de preços no mercado como agora. Lamentavelmente, todos os países que se envolveram nesse conflito estão prejudicando os seus cidadãos, incluindo Portugal. É triste ver as pessoas colocando máxima atenção neste confronto, na compra e no envio de armas, enquanto o seu próprio povo passa fome. Sabemos que para nós, mulheres imigrantes, tudo fica pior. As filas nos abrigos e nas instituições de caridade aumentaram absurdamente. A precariedade cresce a olhos vistos.”
Para Rui, as pessoas de baixa renda já vivem a crise há muito tempo. É que a situação só ganha repercussão quando atinge a classe média. Segundo o assistente social, os imigrantes, por exemplo, estão em situação de constante vulnerabilidade porque existe uma lógica no dito “mercado livre” que faz com que muitos percebam o desprezo do Estado à classe trabalhadora e fazem as empresas desse país funcionarem.
“Essa crise, dizem ser motivada pela guerra, mas antes era por causa dos bancos, e, previamente, por tantas outras razões… A certas pessoas, a crise nunca é novidade. Já sobre as origens desses problemas, nós sabemos que havia sido feito estoque antes do preço subir. A guerra mal começou e tudo já estava a aumentar. Qual é a contribuição que consigo dar para definir o valor do pão que eu preciso comer? Basicamente, é isso.”
Os preços da cesta básica subiram mais de 20% em Portugal. Apesar da pequena queda na inflação, a Autoridade de Segurança Alimentar e Econômica (ASAE) concluiu que itens da cesta básica têm sido comercializados nos supermercados com valores acima dos 50%, superando países como Espanha e França, onde os salários são maiores em comparação com a remuneração no território lusitano. “Antes a gente apertava daqui, segurava dali, e conseguia viver. Mas, agora eu percebo que a cada semana as coisas aumentam mais e o que eu costumava comprar no mercado com 15 euros, hoje está o dobro. Eu deixo lá 30 euros fácil”, aponta Lina Teixeira.
“A única maneira de conseguirmos fazer com que aquilo seja acessível para nós é através da nossa organização. Juntos podemos exigir medidas públicas, pois somos todos membros de um Estado e é com ele que nós temos que falar. Não precisamos dialogar com os privados e nem ser intermediados por eles. Nós estamos cá, contribuímos… A administração pública e os governos têm que nos ouvir. Somos as pessoas mais afetadas e fragilizadas. Aliás, nós queremos que essas pessoas que estão aqui comecem a desenvolver propostas, funções e estratégias de sobrevivência a partir do Vida Justa em rede de bairros”, complementa Estrela.
Maíra Zenun evoca que o atual partido que governa Portugal comece a acolher os imigrantes, principalmente as mulheres, que representam a força que está presente na base de sustentação da sociedade:
“Exploram, minimizam e expulsam essas pessoas para outras áreas da periferia, afetando nós que somos uma enorme parcela da população em Portugal. Pagamos imposto, trabalhamos e fazemos esse país andar. Contudo, somos excluídos de qualquer pauta de negociação. Aliás, os preços por si só já nos excluem automaticamente, né? É uma pena que o PS não ofereça uma agenda social de inclusão e de diminuição das batalhas do povo.”