Em uma São Paulo hostil, acessos de Vai-Vai e Camisa Verde e Branco, com enredo engajado, representam esperança e amor

Atualizado em 22 de fevereiro de 2023 às 17:51
Desfile de escolas de samba no Carnaval de 2023

O Carnaval das Escolas de Samba de São Paulo vem passando por uma crise de identidade tremenda nos últimos anos, com o Grupo Especial dominado por escolas de samba ligadas a torcidas organizadas e com alguns de seus principais expoentes, como Vai-Vai, Nenê de Vila Matilde e Camisa Verde e Branco longe do Grupo Especial.

A noite desta terça (21), porém, trouxe um respiro e uma lufada de esperança em seu Grupo de Acesso, que levou dois destes emblemas de volta à elite.

Além do título merecido do Vai-Vai, maior campeã do Carnaval paulistano, o Camisa Verde e Branco, tradicional escola de samba da Barra Funda, nove vezes campeã do Grupo Especial e oriunda de um dos primeiros blocos carnavalescos da cidade de São Paulo, de 1914, também subiu, ao garantir o vice-campeonato com o enredo “Invisíveis”, um dos mais engajados dos últimos tempos.

Com participações de cerca de 50 membros do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), o maior movimento social da América Latina, além da presença de membros do Coletivo Democracia Corinthiana (CDC), coletivo de torcedores do Corinthians que lutam por democracia e justiça social, além do apoio da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, liderada pelo Padre Júlio Lancelloti, a escola levou à avenida no domingo muita garra e superou as expectativas ao garantir o acesso.

No desfile, foram homenageados diversos nomes que lutaram por justiça social, como Lélia Gonzales, Marielle Franco, Darcy Bibeiro, Dom Paulo Evaristo Arns, Zilda Arns e Paulo Freire (cuja viúva, Nita Freire, participou do desfile).

E talvez isso que faça falta ao Carnaval paulistano em comparação com o Rio de Janeiro. Mais enredos criativos e com um propósito social sendo cantados a plenos pulmões e com chances de sucesso. Eu desfilei no último carro alegórico da escola no domingo e a energia passada entre componentes e arquibancada foi diferente. Todos saíram da avenida com a sensação não só de dever cumprido pelo desfile, mas pela mensagem passada.

E essa mensagem passada ser premiada, como o histórico enredo da Mangueira de 2019 foi, enriquece o Carnaval. Dá aquele sentido que ainda falta muito a uma Liga que valoriza um gabarito de coisas a se fazer, em revelia do que acontece no chão e também que valoriza pouco a criatividade, algo que a própria cidade apresenta nos últimos anos.

São Paulo nos últimos anos se tornou uma cidade ainda mais cinzenta e mais hostil, onde os invisíveis contados no enredo do Camisa Verde e Branco estão cada vez mais inviabilizados e convivendo cada vez mais com a pobreza e a miséria. As gestões de João Doria, Bruno Covas e agora de Ricardo Nunes transformaram uma cidade já naturalmente hostil em um ambiente perigoso, egoísta e cada vez menos feliz.

Como diz a letra, bondade e valor não falta para o povão de São Paulo. Que precisa ser melhor tratado pelos seus governantes, que cada vez mais não ligam para ele.

Confira a letra de “Invisíveis”, o samba que levou o Camisa Verde e Branco ao Grupo Especial pela primeira vez desde 2012:

Brasil, verás que um filho teu não foge à luta
Lutamos contra toda a força bruta
Que insiste em querer discriminar
Queremos direito
Igualdade e respeito
Em cada beco e viela
Povo pobre acolhido pela mãe favela

Bondade e valor, jamais nos faltou
Graças aos heróis dessa pátria não tão gentil
Mas sempre brotou
Do lixão uma flor
Renegados pela força da ambição
Invisíveis frente à Constituição

Contra todo opressor
Nossa fé é munição
Resistimos com amor
Pela nossa nação
Em cada livro se escreve a esperança
Pro futuro da criança

Deus olhai por nós os excluídos
Pois estamos perdidos como bala no ar
Chega dessa tal intolerância
Temos importância não se pode segregar
Da terra colher dividir o plantio a nobreza do irmão do Henfil
É o povo na rua, de peito aberto
De punho cerrado em seu manifesto
Se vidas importam
Eis a pergunta que não quer calar!

Até quando a pobreza irá sustentar
A riqueza de homens que assolam o país?
E o Camisa é a força de expressão
E a Barra Funda um canto que nos faz feliz