PUBLICADO ORIGINALMENTE NA REVISTA DA CAASP
Podem-se desenhar diferentes retratos do Brasil, mas nenhum será tão cruel quanto o do seu sistema carcerário. Depósitos de seres humanos desafortunados, pobres e pretos em absoluta maioria, penitenciárias brasileiras têm sido notícia mundo afora pelos episódios de horror que abrigam. À emblemática chacina do Carandiru, em 1992, quando 111 detentos foram mortos, seguiram-se muitos outros casos de rebelião, confronto entre facções e ações policiais de contundentes a desproporcionais.
O Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão, foi palco de uma rebelião em 2010 por melhores condições que resultou em 18 mortes. Em 2013, um conflito entre facções deixou na mesma prisão nove pessoas mortas, num acontecimento de brutalidade ainda sem par, com cenas de decapitação e canibalismo. Em 2017, na Penitenciária de Alcaçuz, Rio Grande do Norte, uma briga entre membros do PCC e do Sindicato do Crime terminou com 26 mortos.
Há muitos outros eventos recentes do gênero, como aquele em que 33 pessoas morreram na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Roraima, no ano de 2017; o ocorrido no Centro Penitenciário de Recuperação do Pará, em 2018, com 22 mortos; e o do Complexo Prisional Aníbal Jobim (Compaj), em Manaus, que resultou em 15 detentos mortos em 2019.
Quem são as pessoas que, encarceradas, protagonizam ou estão sujeitas a tal grau de violência? O Estado não deveria atuar pela ressocialização delas? O que dizer àquelas que são mantidas nessas casas de terror superlotadas enquanto aguardam julgamento? Com uma das maiores populações carcerárias do mundo, o Brasil é um país seguro?
“Nós temos uma política criminal de encarceramento em larga escala, de encarceramento em massa. E encarceramento com alvo próprio: nós prendemos pessoas negras, pobres e periféricas”, afirma a advogada Priscila Pamela dos Santos, presidente da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB SP.
Na exata linha preconizada pelos estudiosos da sociedade e de suas mazelas, Santos entende que a criminalidade, e consequentemente o encarceramento, cairá ao passo que crescerem os investimentos em educação. Enquanto isso não acontece, o Estado precisa ao menos cumprir sua responsabilidade com os encarcerados, os quais, afinal, estão sob sua responsabilidade.
“A unidade prisional precisa dar educação, trabalho, saúde, cultura, lazer, esporte. São mordomias para o preso? Desculpem, mas nós falhamos aqui fora, então ele precisa adquirir lá dentro condições de voltar aqui para fora”, avalia Santos.
A relação educação / encarceramento, como enfatizado pela advogada, é claramente problemática no Brasil. A partir de dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), constatou-se que entre 1994 e 2009 o número de escolas públicas no país caiu 19,3%, de 200.549 para 161.783. No mesmo período, o número de presídios aumentou 253%, de 511 para 1.806.
De acordo com o último levantamento do Departamento Penitenciário Nacional, órgão do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, ao término de 2017 o Brasil tinha uma população carcerária de 726.354 detentos (estima-se que hoje esse total ultrapasse os 800 mil). Dentre esses, 235.241 (32,4%) são presos provisórios. Observa-se no país uma taxa de 349,8 presos para cada 100 mil habitantes. Em termos de população carcerária, estamos entre os cinco campeões mundiais, ao lado de Estados Unidos, China, Rússia e Índia.
Tais dados até poderiam ser considerados positivos caso a sociedade brasileira se sentisse segura, o que está longe da realidade. A esses percentuais é preciso acrescentar outro, este talvez o mais representativo da inépcia do nosso sistema prisional: de cada 10 presos libertos, sete reincidem no crime.
“A violência não tem diminuído e a população carcerária continua em crescimento”, observa Rubens Rocha Pires, representante da OAB SP no Conselho Penitenciário Estadual. “Precisamos pensar sobre as causas que levam o indivíduo a cometer o crime e a necessidade de acompanhamento durante e após o cumprimento da pena, com a criação de espaços de atendimento compostos por equipes multidisciplinares com psicólogo, jurídico, médico dentista, assistente social. O preso precisa ser reeducado, restituir sua confiança”, adverte.
Segundo Priscila Pamela dos Santos, a política prisional brasileira, baseada na Lei de Execução Penal, da década de 1980, simplesmente não é seguida. Além disso, o país descumpre pactos internacionais nesse campo. “Graças à evolução do ser humano, nós não temos pena de morte no Brasil. Ora, se não temos pena de morte, as pessoas que estão presas um dia vão retornar à sociedade. Nós queremos recebê-las melhoradas ou pioradas?”, questiona a advogada.
Esses indivíduos que retornarão um dia à sociedade, em maior parte autores de pequenos delitos, não raro acabam se tornando criminosos perigosos, uma vez que são cooptados dentro da cadeia por lideranças do crime organizado. “O Estado não é tão organizado quanto o crime é. Os presos ficam reféns dessa rede. O crime freta ônibus para que os familiares visitem o preso na cadeia nos fins de semana, já o Estado põe a pessoa encarcerada a 12 horas de viagem de onde seus familiares moram e não viabiliza a ida deles ao local”, explica Santos.
Para Rubens Rocha Pires, “infelizmente, na sociedade em que vivemos predomina o desprezo pelos presos”. O advogado diz que “falta sensibilização da população em geral para mobilizar-se face às condições de saúde deploráveis nas penitenciárias, ambientes superlotados, ausência de atividades laborais e educativas”.
Entre 2010 e 2017, o número de presos no Brasil aumentou nada menos que 212%. A abertura de vagas prisionais não acompanhou esse ritmo: existe 1,7 preso por vaga disponível, excluídos aqueles custodiados em unidades policiais. Estima-se que sejam necessários 97,84 bilhões de reais de investimento, no prazo de 18 anos, para eliminar o déficit de vagas e sanar a precariedade das instalações prisionais no país.
Necropolítica
O advogado criminal Roberto Tardelli, ex-procurador de Justiça do Estado de São Paulo, não classifica as cadeias brasileiras como “escolas do crime”, como muitos se acostumaram a fazer. Para ele, trata-se de algo muito pior. “Essa coisa de que os presídios são escolas do crime é uma visão burguesa. Hoje, o presídio é um lugar onde a pessoa perde completamente sua autoestima, sua cidadania, seu sentido histórico de viver. Não há uma escola do crime, o que existe é um aniquilamento do ser humano”, indigna-se.
A política penitenciária brasileira, para Tardelli, “resume-se à porta de entrada”.
“O Brasil tem, sim, uma política prisional, que é a do aprisionamento em massa, aquilo que chamamos de necropolítica. Não há uma cultura prisional no sentido de devolver à pessoa a dignidade perdida pela própria prática do crime, pela condição de encarcerado, pelo preconceito em relação ao egresso da cadeia”, percebe Tardelli, que é membro da Comissão de Direito Penal da OAB SP.
Se muitos brasileiros – a maioria? – revoltam-se com o fato de o Estado gastar dinheiro com cidadãos encarcerados, Roberto Tardelli revolta-se com quem pensa assim. E mais do que isso, ele destaca que deixar presidiários em condições precárias custa ainda mais caro aos cofres públicos do que tratá-los com dignidade: “O custo mais alto ou mais baixo do preso varia de acordo com o respeito que se tem por ele. Um preso doente, jogado em condições absolutamente inumanas e de confinamento, representa um custo maior. Na verdade, o que algumas pessoas indagam é: por que não os matam?”
Segundo Tardelli, o mote “bandido bom é bandido morto” serviu a uma campanha de marketing “muito bem tramada pelos meios de comunicação de massa, que convenceram o cidadão de que prender não basta”.
A Lei de Execução Penal, cujo teor assegura certa dignidade ao cidadão aprisionado, nunca foi cumprida de verdade, diz Tardelli, em concordância com o que disse antes Priscila Pamela dos Santos. O advogado nota que, pela lei, o espaço mínimo destinado a cada preso deve ser, no mínimo, de seis metros quadrados – o que só acontece no caso de presos em condições especiais.
Há outros problemas no cumprimento da norma. Por exemplo, quanto à progressividade da pena. “O sistema progressivo, às vezes, é feito de forma primitiva, quase amadora, de tal sorte que a Lei de Execução Penal nunca foi aplicada no Brasil. Embora esteja vigendo, não é prestigiada por quem, por juramento, deveria resguardá-la”.
A política do encarceramento em massa concretiza-se, em parte, por causa do abandono da investigação criminal, esta decorrente do enfraquecimento da Polícia Civil. Segundo o jornalista e escritor Bruno Paes Manso, “em vez de se estudar a indústria do crime, aposta-se basicamente no patrulhamento ostensivo nos bairros mais pobres”.
Pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, Manso lançou recentemente o livro “A guerra, a expansão do PCC e o mundo do crime no Brasil”.
“A própria força do PCC e de outras facções é um efeito colateral do excesso de encarceramento”, afirma o jornalista. Na realidade, as penitenciárias funcionariam em regime de “autogestão” pelos próprios presos. “O sistema fortalece os chefes de gangues. O comando do crime organizado vem de dentro dos presídios”, aponta.
“Ninguém defende a impunidade, mas há outros modelos de pena”, ressalva Bruno Paes Manso.
Segundo Rubens Rocha Pires, representante da OAB SP no Conselho Penitenciário Estadual, em países como o Reino Unido, reservam-se as prisões somente para criminosos que ofereçam risco à sociedade, ampliando-se a utilização de penas e medidas alternativas com acompanhamento e fiscalização dos condenados pelo Estado e pela sociedade.
“A aplicação da pena alternativa deve figurar como regra. Segundo a Constituição Federal e o Código de Processo Penal, a pena privativa de liberdade deve ser a exceção. Além disso, o Estado precisa investir não apenas em políticas públicas que foquem em atos repressivos pós-crime, mas também na sua prevenção”, propõe Pires.
O advogado lembra que a Lei 12.403, de 2011, prevê alternativas à prisão provisória, mas sua aplicação “ainda é um desafio”.
“Existem muitas alternativas ao encarceramento”, assinala Roberto Tardelli. E prossegue de mãos dadas com o humanismo que o caracteriza: “Uma das alternativas ao encarceramento é o seu antípoda: a liberdade. A liberdade torna a pessoa mais fácil de ser trabalhada. É possível que você empreste a quem está livre algum sonho de felicidade, o que dificilmente é possível com quem está preso. A prisão cria na pessoa uma necessidade imediatista por conta de uma rotina absolutamente massacrante, massacradora e sem opção”.
Querosene no fogo
A forma mais fácil de resolver o problema da população carcerária seria liberalizar as drogas. Quem afirma é o magistrado Marcelo Semer, hoje juiz-substituto em Segundo Grau da Seção de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, mas cuja carreira desenvolveu-se quase toda na área criminal. Semer é autor de dois livros de grande repercussão entre juristas e interessados em geral pelo tema: “Sentenciando tráfico” e “Princípios Penais do Estado Democrático”.
Ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia, Semer diz que o encarceramento de pessoas jovens e primárias acaba vinculando-as a facções, o que não aconteceria se estivessem em liberdade. “A vinculação com alguma facção dentro da cadeia é quase uma coisa necessária ao preso, porque o Estado simplesmente tranca a porta por fora e não o ajuda em nada”, nota.
“Quanto mais gente nas cadeias, mais mão de obra para o crime organizado”, sentencia.
O magistrado explica que, mesmo nos Estados Unidos, instituidor da política de “guerra às drogas”, hoje criminaliza-se e prende-se menos por envolvimento com entorpecentes. “Percebeu-se o equívoco, o custo financeiro e o custo social da ‘guerra às drogas’. As pessoas criminalizadas perdem o direito a voto, dessocializam-se”, diz.
Segundo Marcelo Semer, o Direito Penal é seletivo por natureza, portanto o policial tem de escolher a quem fiscalizar. “A ‘guerra às drogas’ é ainda mais seletiva, feita na rua, portanto tende a prender muito mais pobres e negros”, enfatiza.
“O sistema que reduzir a punição pela droga tende a ter um ganho importante, porque o dinheiro que será economizado com o volume de policiais que atuam nisso e para manter presídios lotados pode ser revertido para tratamento de dependentes químicos”, argumenta Semer. E conclui: “A criminalização não resolve o problema dos viciados jogados na rua nem o de suas famílias. A ‘solução’ que se adota hoje torna o problema maior ainda. Estamos jogando querosene no fogo”.
Privatização?
Nenhum dos especialistas ouvidos nesta reportagem considera a privatização de penitenciárias solução para a questão carcerária no Brasil. Segundo Priscila Pamela dos Santos, presidente da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB SP, todas as normas relativas à pessoa presa determinam caber ao Estado a custódia dessa pessoa – e os contratos em curso deixariam os detentos aos cuidados da iniciativa privada. Em São Paulo, relata a advogada, entidades ingressaram com ação civil pública na Justiça contra parcerias público-privadas (PPPs) formalizadas nessa área.
“O que temos não é PPP, é privatização, é entrega da custódia da pessoa presa a um ente particular que visa lucro. Nós estaremos usando a dignidade da pessoa humana como mercadoria”, protesta.
Há casos, diz Santos, em que se estabelecem repasses à empresa administradora correspondentes a uma ocupação de 90% das vagas disponíveis – seria o caso da Penitenciária de Ribeirão das Neves, em Minas Gerais. Assim, o Estado deverá transferir um valor fixo à empresa mesmo que a taxa de ocupação não seja cumprida. Ou prenderá mais gente para justificar a despesa.
A Revista da CAASP questionou a Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo sobre os termos dos contratos existentes para concretização de quatro parcerias público-privadas destinas a gestão de penitenciárias. Eis a nota-resposta da Pasta:
A Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) informa que está em andamento um processo de modernização da gestão prisional. Um edital sobre o tema encontra-se atualmente em análise na Procuradoria Geral do Estado e prevê que 4 unidades prisionais sejam operacionalizadas em gestão compartilhada com a iniciativa privada. Os prédios são novos e devem gerar um total de 3.292 vagas para pessoas presas em regime fechado. A estimativa é de que o edital seja publicado nos próximos dias.
A iniciativa privada será responsável pela manutenção da unidade prisional e também por serviços técnicos e de apoio nas áreas psicológica, médica, odontológica, psiquiátrica, assistencial, pedagógica, esportiva, social, material e trabalho, para o desenvolvimento e acompanhamento dos presos.
A segurança externa das unidades e as escoltas continuarão sob responsabilidade do Poder Público. Os agentes penitenciários também continuarão responsáveis pelas funções de diretor geral da unidade, diretor de segurança e disciplina, além de integrantes da Célula de Intervenção Rápida (CIR), responsável por intervir em casos de distúrbios, entre outras funções.
A proposta é oferecer melhores condições de custódia e obter ganhos na educação, na qualificação profissional, no atendimento à saúde e na reintegração social. Melhorias como a redução dos índices de reincidência e de ocorrências de faltas disciplinares no interior dos presídios, a qualidade e efetiva prestação de atendimento médico e psicossocial, e a oferta de trabalho e implementação de ações socioeducativas são buscadas com a iniciativa e já foram experimentadas em diversos países e em mais de trinta unidades prisionais no Brasil.
Além disso, esta Pasta, em conjunto com a Secretaria de Governo, está realizando os estudos necessários para a formatação de uma Parceria Público Privada (PPP) inédita no Estado de São Paulo.