Por Naira Hofmeister e Diego Junqueira
Do Repórter Brasil
Todos os anos, em março, o MST do Rio Grande do Sul promove uma festa para marcar o início da colheita do arroz orgânico no estado.
Em 2024, no entanto, não houve colheita, nem festa, porque a semeadura do grão, que geralmente começa em setembro, precisou ser adiada em razão de duas enchentes históricas na região metropolitana de Porto Alegre no ano passado, onde estão a maioria dos assentamentos produtores. A colheita foi atrasada e, no lugar da festa de março, o MST organizou um seminário sobre os impactos das mudanças climáticas na agroecologia.
Mas os assentados não contavam que em maio, quando 50% do arroz plantado em dezembro ainda não havia sido colhido, aconteceria a maior enchente da história do Rio Grande do Sul, arrasando as lavouras e deixando desabrigadas centenas de famílias de agricultores do MST. Hoje, parte delas está ilhada, em refúgios mais altos no meio de municípios que praticamente desapareceram. E a produção, o maquinário e a infraestrutura foram perdidos.
“Em Eldorado do Sul e Nova Santa Rita, há sete assentamentos onde perdemos tudo”, afirma Dionéia Soares Ribeiro, coordenadora de insumos do MST no Rio Grande do Sul e diretora da Cootap, a Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre.
A sede da cooperativa, que também fica em Eldorado, está com água na altura do telhado – o assentamento Integração Gaúcha, onde ficam as instalações, desapareceu sob o Rio Jacuí e o Lago Guaíba, que extravasaram seus leitos tradicionais em uma proporção nunca antes vista. Além das perdas na produção, centenas de famílias estão desabrigadas.
O prejuízo ainda não foi calculado, porque o MST gaúcho decidiu colocar toda sua energia na produção de marmitas para serem distribuídas aos refugiados climáticos do Rio Grande do Sul.
Na terça-feira (7), integrantes do movimento começaram a produção de 1.500 ‘quentinhas’ por dia no assentamento Filhos de Sepé, em Viamão, também na região metropolitana da capital. “Temos capacidade de produzir até mais do que isso, mas o colapso do estado foi tamanho que ainda não há logística para a entrega”, explica Cedenir de Oliveira, integrante da coordenação nacional do MST.
Prejuízo pode chegar a 10 mil toneladas de arroz orgânico
Embora a preocupação no momento seja atender os desabrigados, o MST tem estimativas iniciais do prejuízo à produção. Segundo Dionéia Ribeiro, a previsão era colher 280 mil sacas de arroz orgânico na safra 2023/2024, sendo 150 mil delas na Região Metropolitana de Porto Alegre.
Em cálculos ainda superficiais, o MST acredita que pelo menos 50% do arroz em todo o estado ainda estivesse no pé, sem colher. Isso representa 140 mil sacas, ou 7.000 toneladas de colheita perdida. “É impossível recuperar a produção dessas áreas alagadas”, explica Ribeiro.
Além disso, segundo estimativas repassadas pelo movimento ao presidente da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Edegar Pretto, pelo menos 60 mil sacas de arroz orgânico já colhido pelos assentados de Eldorado do Sul foram perdidos também.
“Não temos energia para ligar os motores do silo”, lamenta Dionéia Ribeiro sobre a perda do arroz já colhido. Essas 60 mil sacas representam mais 3.000 toneladas, totalizando ao menos 10 mil toneladas de prejuízo. “É uma enchente de grandes proporções, uma catástrofe, e a previsão é que a cheia dure pelo menos até o dia 18 de maio”, lamenta.
Cedenir Oliveira aposta em uma perda ainda maior. “Precisamos contabilizar as perdas do ano passado também: o arroz que foi plantado em setembro e outubro, morreu com as cheias de novembro. O arroz que foi plantado depois disso, morreu agora. É incálculável”, completa. Uma campanha de doações por PIX foi aberta para arrecadar recursos.
Rio Grande do Sul responde por 70% da produção nacional de arroz
Considerando o arroz orgânico e não orgânico, o Rio Grande do Sul é o maior produtor nacional, com 6,9 milhões de toneladas colhidas na safra 22/23, segundo a Conab, o que corresponde a 70% da produção nacional.
Para este ano, a previsão era aumentar em 8% a produção no estado, para 7,4 milhões de toneladas. Porém, 17% da safra ainda não havia sido colhida até o final de abril, quando o Rio Grande do Sul passou a ser alvo das fortes chuvas.
Isso representa cerca de 150 mil hectares não colhidos, ou cerca de 1,2 milhão de toneladas de arroz, segundo cálculos da Repórter Brasil com base em dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) sobre produtividade e área plantada.
“17% da produção do arroz está embaixo d ‘água, não foi possível colher, estava no campo ainda. E tem mais uma quantidade expressiva que já estava colhida foram para os armazéns [também afetados]. Não temos dimensão ainda do que foi perdido”, afirma Edegar Pretto, presidente da Conab.
Pretto ressaltou que a prioridade no momento é a distribuição das cestas básicas para cozinhas solidárias que estão em condições de produzir marmitas.
“Hoje [quarta] de madrugada, chegaram as primeiras cestas das 52 mil que foram adquiridas inicialmente pelo MDS e pela Conab. E agora ao meio-dia começa a distribuição aqui nos abrigos [da capital]. Falta de tudo, mas a alimentação é básica. São mais 160 mil pessoas desalojadas [no estado]. Então esse público tem prioridade”, disse.
Segundo Pretto, está sendo feito um trabalho junto aos municípios gaúchos para identificar a demanda e fazer chegar os alimentos onde há necessidade, e que as estruturas montadas para realizar os resgates também poderá ser utilizada para a distribuição dos alimentos, assim como para água, kits de higiene e limpeza.
A prefeitura de Porto Alegre calcula mais de 12 mil desabrigados acolhidos na cidade. No estado, a Defesa Civil do Rio Grande do Sul calcula que 67,5 mil pessoas estão desabrigadas. Ao todo, 1,4 milhão de pessoas foram afetadas, sendo que 164 mil tiveram de deixar suas casas. Até o momento, 107 pessoas morreram, e 136 continuam desaparecidas.
Hortifrutis são enviados de Porto Alegre à Bahia
Além do impacto na produção de arroz, o MST gaúcho informa que as hortas dos assentamentos da Região Metropolitana de Porto Alegre também perderam tudo o que estava plantado. “Só a parte superior das estufas em Eldorado do Sul ficou fora da água”, conta Dionéia Ribeiro.
A produção de hortifrutigranjeiros do MST local chegou a 2.900 toneladas na safra 2022/2023, segundo informações do Atlas Agroecológico dos Alimentos Saudáveis, publicação da cooperativa de trabalhadores. Raízes, hortaliças e frutas compõem a cesta de alimentos produzida na região, que também entrega itens industrializados como geleias, sucos e molhos.
Essa produção é distribuída nas várias feiras orgânicas da capital do Rio Grande do Sul, mas também atravessa o país por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do governo federal. “Há contratos com as prefeituras de São Paulo e Guarulhos, por exemplo, e até com algumas localidades na Bahia”, revela Cedenir Oliveira. O PAA funciona em uma ponta como estímulo à produção da agricultura familiar, garantindo a compra dos alimentos, e na outra, fornecendo comida de qualidade para a merenda escolar, entidades assistenciais e outros equipamentos públicos.
Criado em 2003, durante o primeiro governo Lula, o PAA foi modificado em 2021, por Jair Bolsonaro. Relançado no início de 2023, com orçamento de meio bilhão de reais, havia sido uma injeção de ânimo para os agricultores ecologistas do Movimento Sem Terra. “As hortas estavam sendo ampliadas, estavam bonitas, verdes, tinha uma produção crescente, que estava se recuperando depois de um tempo reduzida. Mas agora está tudo coberto de água”, lamenta Ribeiro.
O presidente da Conab, Edegar Pretto, afirmou ainda que as perdas de arroz orgânico podem impactar também um programa que vinha sendo implementado em parceria com o SUS para a inserção de comida orgânica para pacientes em tratamento com câncer na rede pública.
“Estamos trabalhando toda uma ação organizada com o Ministério da Saúde para garantir que todos os pacientes em tratamento de câncer, que é uma doença que está relacionada diretamente aos agrotóxicos, que esses pacientes consumam somente comida orgânica. E o arroz é alimento base da nossa população. Então todas essas ações terão que ser revistas agora”, diz Pretto à Repórter Brasil.
Cheia se desloca e ameaça produção no sul do RS
Além de contabilizar os danos já ocorridos, o MST do Rio Grande do Sul se preocupa com o que ainda pode ocorrer nos próximos dias. As águas que desceram pelos rios vindos do Vale do Taquari, inundado na semana passada, e que agora cobrem boa parte do território de Porto Alegre, Canoas, São Leopoldo e Eldorado do Sul – entre outros municípios atingidos – seguem seu curso pela Lagoa dos Patos, que deságua no mar em Rio Grande, no extremo sul do Estado.
No caminho estão outras áreas da reforma agrária, como o assentamento Lagoa do Junco, em Tapes, onde vive Dionéia Ribeiro. “Acreditamos que as casas não serão atingidas, pois estão em área mais elevada. Mas pelos mapas de previsões, 50% da nossa lavoura de arroz será inundada”, antecipa.
Na região sul do Estado, mesmo localidades distantes das margens da Lagoa dos Patos são afetadas pelos eventos extremos climáticos. Os assentados de Canguçu, por exemplo, não conseguiram semear o arroz nesta safra porque foram atingidos pelo rompimento de uma barragem local após as cheias anteriores.
Outro exemplo do tamanho do problema vem dos produtores de leite do MST – grande parte deles, concentrada justamente no sul do Rio Grande do Sul. “Aquela região é altamente produtiva no leite, mas os caminhões já começam a não recolher o leite, porque não tem como vir para a indústria [em razão das estradas fechadas]”, observa Cedenir Oliveira. “Então mesmo as famílias que não foram atingidas diretamente pela enchente estão impactadas porque o colapso do processo produtivo atinge todo mundo”, conclui.
Situação dos assentamentos da Região Metropolitana de Porto Alegre
Assentamento Integração Gaúcha – Eldorado do Sul
100% das casas atingidas
100% da produção atingida
Sede da Cootap debaixo d’água
Assentamento Apolônio de Carvalho – Eldorado do Sul
50% das casas atingidas
100% da produção atingida
Assentamento IPZ – Eldorado do Sul
100% das casas atingidas
100% da produção atingida
Assentamento Coopan – Nova Santa Rita
100% da produção atingida
Assentamento Santa Rita de Cássia II – Nova Santa Rita
40% das casas atingidas
100% da produção atingida
Assentamento Itapuí – Nova Santa Rita
100% da produção atingida
Assentamento Sinos – Nova Santa Rita
100% da produção atingida
Assentamento Filhos de Sepé – Viamão
parte da produção atingida, sem estimativa
Publicado originalmente no site do MST
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