O relato de uma entrevista que não aconteceu com o ditador argentino Jorge Rafael Videla, morto hoje.
Jorge Rafael Videla morreu na sexta, 17 de maio, aos 87 anos, na prisão de Marcos Paz, onde cumpria pena perpétua pelos crimes cometidos durante a ditadura militar argentina.
Videla governou o país entre 1976 e 1981, depois de um golpe que depôs María Estela Martínez de Perón. Em 1985, foi sentenciado à perpétua. Em 1990, Menem, então presidente, o liberou num indulto, junto com outros militares e chefes de polícia.
Em 2010, num novo julgamento, Videla ganhou de novo a prisão perpétua por crimes de lesa-humanidade. Foi considerado responsável também por um esquema de sequestros de recém-nascidos de militantes mortos ou desaparecidos. Numa entrevista ao jornalista Ceferino Reato, Videla admitiu ter sido responsável direto pelas “mortes e desaparecimentos de entre 7 mil e 8 mil pessoas”. “Eu sabia tudo o que estava acontecendo e autorizei tudo”, disse. “Tenho peso na alma, mas não estou arrependido de nada”.
Nos anos 90, enquanto indultado, Videla fazia exercícios na Costanera Sur, um parque ecológico nas cercanias de Buenos Aires. Num desses passeios, encontrou o escritor e jornalista Martín Caparrós. Caparrós havia retornado à Argentina depois de um exílio na Europa, primeiro em Paris e depois em Madri. Hoje é colunista do El País.
Ele escreveu sobre o dia em que esteve com o general, tentando entrevista-lo, acompanhado de um cinegrafista. Como no caso da morte de Margaret Thatcher na Inglaterra, a de Videla está provocando mais júbilo do que tristeza no país. O relato de Caparrós é sobre os bastidores de uma reportagem que ele não conseguiu fazer – e sua impotência patética diante de um monstro. “Durante anos, eu me perguntei que ideia de jornalismo me impediu de partir o gravador em sua cabeça”.
O assassino filho de mil putas Jorge Rafael Videla, digno militar argentino, acaba de morrer. Ele morreu, por sorte, em uma prisão. Seu desaparecimento – seu desaparecimento – é um alívio para todos. É raro que a morte seja uma alegria, mas agora é. Alguns, neste momento, lamentam que ele não tenha sofrido como suas vítimas. Sem comparar, eu acho que ele sofreu muito ao ver que os argentinos ricos que o apoiaram quando seu governo torturava e matava o abandonaram.
Mas essa é outra discussão. Eu me lembro da única vez em que o vi. Em 1991, um indulto de Carlos Menem o havia soltado.
O general Videla estava livre e alguns amigos me disseram que, durante muitas manhãs, ele passeava pela Costanera Sur, antes da reforma de Puerto Madero, então um lugar muito marginal.
Lá estávamos nós, Rafael Calvino e eu. Como você poderá ver, no final tivemos uma breve conversa. Durante anos, muitas vezes eu me perguntei por que razão, que medo, que ideia de jornalismo me impediu de partir o gravador em sua cabeça. Ou de pelo menos tentar.
O ginásio de Videla
Eram apenas 08:30 quando o Peugeot 504 veio de Cangallo devagar, tranquilo, e pegou a Costanera até o fim, até a fragata Sarmiento. O carro era cinza, seminovo, absolutamente discreto, só com uma antena a mais.
Liliana Imas Heker e Ernesto tinham me dito dois dias antes.
– Quando eu vi pela primeira vez eu não podia acreditar. Na verdade, eu não vi, eu ouvi. Eu estava fazendo flexões e, de repente, ouvi uma voz muito seca, muito forte, que me disse: “Bom dia, senhor”. Levantei a cabeça e o vi. Até hoje a impressão perdura.
Imas disse isso. E Heker disse que não sabia o que fazer.
– Queríamos que ele fosse reconhecido, era terrível que este homem estivesse andando por aí como se nada tivesse acontecido.
Uma antena a mais não é grande coisa esses dias. Dentro do carro – placa C1386767 – estavam uma senhora obesa, um gorila e um homem magro com um bigode que estava dirigindo com a janela aberta, tomando o ar da manhã fria. O ex-general, ex-presidente, ex-salvador do país, ex-presidiário e ex-assassino Jorge Rafael Videla estava indo, toda segunda, quarta e sexta-feira, fazer exercícios matinais.
– Começou a aparecer no final de outubro, disse Imas. E nunca parou desde então.
O carro pegou de surpresa a Calvino e a mim. Embora o estivéssemos esperando, ao invés de parar, o carro continuou, virou e dirigiu-se para o Sports City Armando. Pensávamos que o havíamos perdido: eu achei que, pelo menos, tinha arruinado sua manhã esportiva, e imaginava pessoas invadindo distraidamente o lugar que o homem frequentava, apenas para foder um pouco sua vida.
Esperamos mais um tempo e ele não retornou. No final, nós começamos a caminhar em direção a um coreto. Ao chegarmos, encontramos o carro; ao lado, encostado na grade do calçadão, o gorila lia no jornal sobre o empate do Boca e, um pouco mais adiante, no gramado da avenida, o ex resfolegava por causa do esforço dos abdominais.
– Eu não vou falar. Estou fazendo a minha atividade diária.
Fazia um tempo que eu caminhava ao seu lado. O ritmo era forte e ele fingia não me ouvir. Eu gritava:
– Mas você não se preocupa por estar num lugar público?
– Você não tem medo?
– Eu não fiz o que você fez.
– São questões de critério.
Ele disse isso sem rodeios, sem me olhar uma única vez, e saiu correndo com suas pernas magras. Estava sozinho. O guarda-costas continua lendo o jornal, quieto, e ele trota, como se estivesse assobiando. Usa calção azul, camiseta azul e uma toalha de mão que passa na cara de vez em quando. Para um homem da sua idade, sua condição física é notável. Apesar do suor e das veias saltadas nas têmporas, como se prometessem explodir.
O lugar é idílico, muito verde e quase deserto. Há jacarandás em flor e as vozes benignas de muitos pássaros. No meio da avenida, entre as árvores, jovens gritam e se empurram. O ex passa por eles, alguém o reconhece e todo o grupo fica imobilizado, congelado.
– Eu o mato com a indiferença.
Diz, mais tarde, um garoto de cabelo curto, um dos frequentadores do local.
– Para mim, é de morte o cara correr como qualquer um, com tudo o que ele fez, mas é melhor matá-lo com indiferença.
– Sim, porque você vê que ele olha para você para que seja reconhecido, para que você possa dizer alguma coisa.
– Sim, ele te desafia.
– Não, ele quer cumprimentá-lo. No começo, ele ficava lá no final do calçadão, perto da fragata, mas agora vem até aqui, ganhou confiança.
Diz outro corredor, de seus quarenta anos, o cabelo cinza impecavelmente penteado, sem suar.
– Eu vim aqui para correr e o resto não me importa, você sabe.
Mas agora o ex continua trotando suavemente, afiado, e um entregador de jornais passa de bicicleta ao seu lado e o cobre de elogios. Não ouvi as palavras, mas compreendi os gestos, os sorrisos. Um caminhoneiro o saúda e o ex responde com o braço erguido.
– Outro dia ele estava correndo na minha frente e eu o ultrapassei bruscamente para ver o que acontecia e ele virou-se rapidamente, assustado. O tipo deve ter medo, com o passado que tem.
– Eu não dou nada por ele, como faço com qualquer milico, digamos, perto do fim, um sessentão muito bronzeado. Porque ele não me fez nada, nem a algum parente meu, então eu não tenho nada contra ele.
A Costanera Sul é remanescente de outro tempo, outro país. A ruína do que o país seria quando tinha um futuro, uma parte da cidade que a natureza está recuperando lentamente. No coreto, no final do século, o Dr. Luis Viale, há 120 anos, ofereceu seu casaco a uma senhora em um naufrágio, a fim de se afogar como um cavalheiro. Aqui, o mundo parou num gesto de bronze, inútil, perfeitamente desnecessário.
Uma outra corredora, de seus 30 anos, diz:
– Ele não é um cara mau, é um assassino condenado pela justiça.
– Que tipo de justiça? A mesma que o soltou? Justiça só serve para condenar os pobres. A justiça soltou esse cara e outros. O que eu não entendo é a igreja. Eles o condenam e depois o bispo o abençoa. Me pergunto se o bispo crê no mesmo Deus que eu acredito. Que arrogância, por favor, que arrogância!
O ex caminha de volta. Depois de um tempo, aparece sua esposa, que foge ao ver Calvino com a câmera na mão. Eu me pergunto por que escolheu esse lugar. Sua casa é na Figueroa Alcorta, ao lado dos bosques de Palermo, mas é provável que seja muito popular. Aqui, no entanto, há apenas um punhado de gente, entre eles oficiais do exército. Mas, de qualquer forma, há algo desafiador no fato de ele estar num passeio público e não escondido em um clube ou numa quinta. Como quem reivindica o direito de usar uma cidade que era dele.
O ex está chegando ao coreto com a veia muito inchada.
– Se eu tivesse feito o que você fez, teria muito medo.
– Se você tivesse feito alguma coisa, não estaria aqui.
Ele diz isso com um grunhido, sem olhar para mim, e não entendo muito bem a ameaça. Eu o sigo, dizendo estupidamente que repita, que repita se tiver coragem, mas ele caminha até o carro onde o espera o segurança. Eu não sei mais o que fazer, ele está saindo e só por respeito eu acho que devo gritar alguma coisa. Então eu grito “assassino” e ele se vira, olha para mim e entra no carro. Como acontece toda segunda, quarta e sexta, às 9 horas, em Cangallo e na Costanera.