Entrevista: o papel do linchamento virtual no Brasil, segundo o cientista social José Martins

Atualizado em 18 de março de 2015 às 16:06

linchamentos

 

Com os nervos à flor da pele, setores da sociedade brasileira têm mostrado garras e dentes para seus oposicionistas. Também nas redes sociais (ou principalmente ali) a intolerância e a polarização denotam uma mentalidade tacanha a qual todos se negam a admitir que alimentam.

É possível traçar um paralelo com o linchamento propriamente dito, daquele tipo incitado por apresentadores histéricos de TV? É. “Os linchadores atuam sempre em nome de uma identidade de pertencimento contra o estranho”, afirma em seu livro José de Souza Martins, cientista social autor de “Linchamentos, a justiça popular no Brasil”, que acaba de ser lançado.

Com uma média de 4 linchamentos (e/ou tentativas de) por dia, nos últimos 60 anos cerca de 1,5 milhão de pessoas participaram ativamente dessa barbárie.

O DCM entrevistou o professor que é mestre, doutor e livre-docente em Sociologia pela USP e titular aposentado da faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

O linchamento virtual das redes sociais colabora para um comportamento de beligerância na população? Ela se materializa nas ruas?

Linchamento virtual não existe propriamente como linchamento. Tem-se falado muito em linchamento moral, o que é apenas uma força de expressão, já que se trata de agressão de natureza diversa da do ato de linchar. O que pode contribuir para linchamentos, e isso tem ocorrido, é a satanização estereotipada de determinado tipo de pessoa, como ocorreu no linchamento cruel de uma mãe de família, no Guarujá, não faz muito tempo. Criou-se um estereótipo satanizado de mulher, que foi difundido pelas redes sociais. Quando uma mulher achou que aquela era a mulher cuja imagem fora divulgada, seu simples grito de alerta foi suficiente para que em pouco tempo cerca de mil pessoas estivessem linchando a vítima do engano.

O senhor diz que depois das manifestações de junho houve um aumento no número de tentativas de linchamento. A que se deve isso?

Tomando como referência os 60 anos cobertos por minha pesquisa, há momentos em que, claramente, há um crescimento no número de ocorrências: logo após o fim do Estado Novo, logo após o fim da ditadura militar e em seguida às manifestações de rua de junho de 2013. Insegurança e medo parecem predispor as pessoas a se agregarem em multidão quando se sentem coletivamente ameaçadas pela suposta falta de ordem que essas transições sugerem.

Os meios de comunicação de massa fomentam o medo e a sensação de insegurança?

É possível que sim, especialmente noticiosos em que o locutor questiona a benevolência da justiça formal e chega a clamar pela prática da vingança. Mas é difícil fazer essa afirmação porque linchamentos só ocorrem quando existem circunstâncias que predispõem os linchadores e agir.

O linchamento é um ‘acordo social’ que visa proteger justiceiros uma vez que o policiamento é precário?

Não existe a palavra ‘linchamento’ no Código Penal. Isso de modo algum quer dizer que linchamento não seja reconhecido como crime. Se identificados, os linchadores são autuados e processados pela consequência do ato de linchar: homicídio ou tentativa de homicídio. Portanto, linchamento é crime. Além disso, ação de justiceiro é uma coisa e linchamento é completamente outra.

Qual o tipo de ocorrência gera uma maior revolta entre os linchadores? O estupro é líder das estatísticas?

Sessenta e três por cento dos linchamentos analisados são motivados por violência contra a pessoa: assassinato, agressão, estupro. Mas nessa categoria, há crimes motivadores de linchamento que acarretam maior índice de crueldade no ato de linchar. É, sem dúvida, o caso do estupro, especialmente de crianças. A pedofilia e o incesto também são motivadores de justiçamento. É significativo que presos, até mesmo homicidas, linchem o prisioneiro que está na cadeia porque estuprou uma criança.

Há setores da sociedade tidos como violentos (notadamente a periferia pobre e negra). Entre os casos de linchamento, os protagonistas pertencem a algum extrato?

Num dos primeiros e preliminares estudos sobre linchamentos no Brasil, baseado em um pequeno número de casos, uma autora afirmou que os linchamentos atingem, sobretudo, pobres e negros. Essa afirmação foi contestada por um competente estudioso do tema, o professor José Arthur Rios, em artigo fundamentado, publicado em revista especializada. Minha pesquisa se baseia em 2.028 casos e meus dados não confirmam essa suposição.

 

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Há uma proporção ligeiramente maior de brancos linchados do que de negros. Se considerarmos que a proporção dos propriamente negros no Brasil é relativamente pequena, então podemos concluir que sobre eles incide mais esse tipo de violência. Mas é preciso considerar que as multidões linchadoras mesclam brancos, negros, pardos e mestiços de vários matizes. No linchamento de brancos, há brancos, negros e mestiços, do mesmo modo que há negros no linchamento de negros.

Os linchamentos tendem a ocorrer em bairros urbanos de formação relativamente recente, cuja sociabilidade é mais acentuadamente frágil do que nas sociedades consolidadas. Tem ocorrido, também, com mais frequência nas novas cidades amazônicas. Ou seja, lugares em que não existe propriamente o espírito comunitário e a confiança recíproca entre os moradores, bairros dominados pelo medo dos desconhecidos.

Situação que fomenta a produção de estereótipos negativos em relação aos outros. Salvador, a segunda cidade brasileira com maior ocorrência de linchamentos, onde é alta a participação da população negra, mesmo nos bairros relativamente novos, contribui significativamente para distorcer o quadro de ocorrências, aumentando o número de casos de negros, na periferia, vítimas de linchamentos e tentativas. Não porque são negros, já que muitos dos linchadores também são negros, mas porque são demograficamente majoritários.

Não só pobres são vitimados por linchamentos, mas também gente da classe média e até mesmo de alta posição. Até um padre, um juiz do Superior Tribunal de Justiça e políticos aparecem como vítimas de tentativas de linchamento. Por outro lado, pobres e pessoas da classe média aparecem lado a lado na composição das multidões linchadoras. O pressuposto de um perfil de classe tanto entre as vítimas quanto entre os agressores é completamente falso.

Na questão da cor, foi possível observar um fato esclarecedor, que mostra o quanto lidamos mal e primariamente com a questão do preconceito, como se o preconceito racial fosse entre nós preconceito de origem e não preconceito de marca, distinção feita em estudo referencial pelo sociólogo Oracy Nogueira. De origem é o preconceito que perdura não obstante o branqueamento pela mestiçagem. Alguém que teve um ancestral negro será considerado negro mesmo que negro não seja. É o típico preconceito na sociedade americana. De marca é o preconceito baseado na cor visível e não na cor suposta. Desaparece com o eventual branqueamento das pessoas de origem negra. É o que ocorre no Brasil.

No entanto, minha pesquisa revelou que, se ninguém é propriamente linchado por ser negro e sim por ter cometido violência moralmente condenável contra outra pessoa, à medida que o linchamento se desenrola o índice de crueldade dos linchadores tende a aumentar no correr do processo se o linchado for negro. Na mesma linha, os pobres tendem a ser mais violentos contra os pobres. Analisei separadamente os linchamentos ocorridos em favelas e pude observar que aí a reação vingativa dos linchadores é mais intensa, mesmo em casos de crime contra propriedade, como roubos e assaltos, tema em que há mais complacência fora da favela.