Cinco escritores para serem lidos por quem quer escrever um bom português

Atualizado em 2 de outubro de 2014 às 16:48
Obra de Jean Even

“O MANUAL DO GUARDIAN VOU LEVAR”, me disse Pedro, 22 anos, meu filho do meio. Era terça-feira, e ele estava arrumando suas coisas para voltar ao Brasil depois de quase um ano em Londres, no apartamento de Ranelagh Gardens que ele iluminou com sua inteligência, solidariedade, bom humor e incrível capacidade de conviver bem com todo mundo. Foi Pedro que descobriu o manual, e ele me citou algumas vezes uma passagem que o marcou. “Você só pode escrever a sério se antes ler a sério”. Nos últimos tempos, Pedro incorporou alguns autores à luz de seu abajur: Nelson Rodrigues e Isaac Bashevis Singer, por exemplo. Gosto de ver em seu texto em contínua evolução as marcas das leituras dos grandes escritores: os adjetivos teatrais, retumbantes de Nelson Rodrigues ou as tramas judaico-polonesas de Singer,em que o diabo é um personagem frequente.

Às equipes com as quais trabalhei ler, e não apenas notícias, sempre foi uma pregação frequente. Ter a leitura como hábito, considerada a afirmação de Aristóteles de que é o hábito que faz a virtude. Encontrar tempo para ler disciplinadamente. A quem diz que não tem tempo para ler, respondo que talvez seja hora de rever as prioridades. Não há nada de realmente importante para o que a gente não arranje tempo. É mais ou menos como dizer que livro é caro e ao mesmo tempo não se queixar da conta de um almoço que custa três ou quatro livros.

Para quem lida com palavras, como os jornalistas, ler é a diferença entre uma carreira limitada ou aberta. Os cinco autores fundamentais, aqueles que escreveram em português melhor que ninguém, na minha avaliação:

1) Machado de Assis. Sobriedade, elegância, precisão, ironia fina. Papai leu Machado numa coleção antiga, de capa dura verde, com a grafia antiga, pharmácia, por exemplo. Acabei lendo Machado na coleção de papai, e prestava atenção dobrada em suas anotações, na letra tão clara e marcante que, mesmo ele tendo morrido há mais de 25 anos, jamais sai de minha mente. Ao contrário de muita gente, gosto de livros anotados por leitores anteriores. De Machado, Memórias PóstumasDom Casmurro e Quincas Borba são vitais, e alguns contos, como O Alienista e A Cartomante, vão também encantar o leitor mesmo na segunda ou terceira leitura. Tenho uma paixão particular por um conto de menor relevância de Machado, Um Capitão de Voluntários,  uma história de amor traído e de arrependimento sincero e comedido que li muitas vezes. E tenho uma opinião convicta sobre a controvérsia a respeito da traição ou não de Capitu em Dom Casmurro. Não há evidência que sustente o adultério além da versão subjetiva de Bentinho, o marido. Assim, ele diz que Capitu o traiu com seu melhor amigo, Escobar. Não quer dizer que isso seja verdade.  A mesma situação aparece num romance de um dos maiores escritores da era moderna, John Upkide,  A Versão de Roger. O narrador, Roger, acredita que sua mulher o está enganando. Updike já no título colocou a ressalva: é a versão do marido.

Gostei de saber, numa conversa relativamente recente com Barbara Abramo, jornalista e astróloga, que foi papai quem levou seu pai, Claudio Abramo, a ler Machado. Claudio, um dos maiores jornalistas brasileiros de seu tempo, e não só dele, um dândi intelectualmente refinado que fora atraído na mocidade, como Paulo Francis, pelas idéias então sedutoras do trostsquismo, pegou Machado pelas mãos de papai e não largou mais. De sua extravagância divertida é mostra o nome completo das duas filhas que teve com a sobrinha Radha Abramo:  Barbara e Berenice Abramo Abramo.

2) Eça de Queiroz. Eloquência, beleza plástica nas frases, humor ferino, espírito cosmopolita. Também acabei lendo Eça numa coleção na casa de meus pais, capa dura, vermelha, antiga. Os Maias é o melhor romance de Eça, um retrato deslumbrante dos meios intelectuais lisboetas na segunda metade do século XIX. A amizade entre Carlos e Ega é comovente. Carlos se apaixona pela irmã, Maria Eduarda, sem saber. A mãe fugira com um canalha italiano quando ela era bebê, e Carlos uma criança. Sumiram, nunca mais se soube delas, e quando uma mulher linda aparece em Lisboa Carlos não tinha como desconfiar que podia ser quem era. A cena em que, já sabendo e dilacerado, ele não resiste a uma última sessão de sexo com a irmã é uma obra prima literária.

Por causa de Os Maias, quis dar a Camila, minha caçula ruivinha, minha musa pré-rafaelita com seus cabelos longos, ondulados e vermelhos como a bandeira chinesa, o nome de Maria Eduarda, mas fui batido na democrática contagem de votos familiares. O Primo Basílio e O Crime do Padre Amaro são também leituras vitais. Machado de Assis escreveu uma resenha clássica, demolidora de O Primo Basílio, na qual dizia que a única coisa que se aprendia ali é que não se devia confiar em empregada doméstica. A empregada de Luísa, a personagem central do livro, casada e afastada do recatamento pela sedução tenaz de Basílio, o primo canalha, chantageia a patroa e a leva ao inferno. Daí a observação ferina de Machado. Eça receberia de seu colega brasileiro a dedicatória mais curta da história da literatura: “Para Eça de Queiroz, de Machado de Assis”. Ponto.

3) Rubem Braga. Lirismo, musicalidade nas frases, elegância, poesia em prosa. A crônica é um gênero literário considerado menor, mas Rubem Braga destruiu este preconceito com sua escrita sublime e é hoje amplamente tido como um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. Há uma coletânea de 200 crônicas, da Record, que reúne o melhor de Rubem. Tenho-a sempre por perto, e de tempos em tempos vou direto a Quarto de Moça, ou O Rei Secreto de França, ou A Moça Chamada Pierina, e me deixo levar pela brisa poética de Rubem. Ele chegou a escrever crônicas para a TV Globo, e lembro como o noticiário ganhava com o bônus surpreendente do lirismo de Rubem Braga.

Teve muitas mulheres, mesmo não sendo rico ou bonito, mas jamais achei isso esquisito. Como Demóstenes, o sábio grego que decidiu ser orador ao ver em Atenas, garoto, um advogado salvar um réu claramente culpado pela capacidade de articular pensamentos e frases, Rubem conhecia o poder das palavras. Tão singular era que, ao saber que estava condenado à morte, por um câncer que provavelmente decorrera de sua compulsão em fumar, fez questão de ele mesmo ir a uma funerária e escolher um caixão. Quando o vendedor perguntou para quem era, Rubem disse que era para ele mesmo.

4) Nelson Rodrigues. Estilo, adjetivos incomparáveis, diálogos holywoodianos, humor carioca, que cutuca mas não fere. Se tivesse escrito em inglês, Nelson Rodrigues seria tido como um dos maiores dramaturgos da história do teatro. O português limitou seu alcance. Beijo no Asfalto e Vestido de Noiva são duas peças que todo mundo deveria ler uma, duas, muitas vezes. O enredo absurdo e patético mas factível e conduzido com extrema perícia, os diálogos incrivelmente bem feitos, são marcas do teatro de Nelson Rodrigues. Como romancista, contista e cronista, ele produziu coisas menos grandiosas, é verdade, mas muito boas de ler. Criou personagens únicos, como a grã-fina de nariz de cera que chegava ao estádio e perguntava quem era a bola. Pegou no pé dos esquerdistas que reprovava espirituosamente e completamente, sendo que seu filho, a quem dera o próprio nome, tinha sido preso por pegar nas armas. De um deles, Dom Hélder Câmara, bispo que representava a alma igualitária e anticapitalista da Teologia da Libertação, dizia que só olhava para cima para ver se ia chover.

5) Jorge Amado. Fluência, verve baiana irresistível, ritmo galopante na escrita. Outro que foi prejudicado, em termos históricos, por escrever em português. Quando o Nobel de Literatura só ia para americano ou europeu dos grandes centros, Jorge Amado estava fora. Depois, quando o Nobel alcançou regiões remotas e escritores às vezes bizarros, ela já era consagrado demais para ganhar. Li todo Jorge Amado, aos 21 anos, da melhor maneira: em Salvador, onde fui passar férias longas na casa de minha tia Teté, que acabara de ter um filho, Pedro Mottin, de quem eu seria padrinho orgulhoso. Havia uma coleção de Jorge Amado nas bancas de jornais, e ao pegar o primeiro, Capitães da Areia, que conta a história de meninos desamparados, não parei mais. Da primeira fase de Jorge Amado, marcada pela militância comunista, recomendo, além de Capitães da Areia, Mar Morto, lírico, uma história de amor e perda nas águas da Bahia.

Na segunda fase, Jorge Amado, desiludido com a revelação dos crimes de Stálin, trocou a militância comunista pela militância baiana, e retratou uma Bahia tão linda e vivaz como suas mulatas. Gabriela, Cravo e CanelaDona Flor e seus Dois Maridos e Tieta do Agreste são ideais para ler em Salvador ou cercanias ensolaradas, mas mesmo em Londres têm o poder de trazer um pouco do sol baiano para aquecer as horas. Quando eu soube que a premiada romancista inglesa Hillary Mantel não lera nenhum autor brasileiro, os dois romancistas nacionais que chegaram a ela, em traduções para o inglês, foram Machado e Jorge Amado

Emir, Pedro e Camila em frente ao nosso condomínio em Ranelagh Gardens
Emir, Pedro e Camila em frente ao nosso condomínio em Ranelagh Gardens

“SÓ ESCREVE A SÉRIO QUEM LÊ ANTES A SÉRIO“, como Pedro, meu filho, me disse mais de uma vez ao ler o manual do Guardian.  Machado, Eça, Rubem, Nelson Rodrigues e Jorge Amado são leituras sérias. Seriíssimas, como diria o agregado José Dias, o superlativo personagem de Dom Casmurro. Pedro levou, claro, o manual, e também um bocado de mim mesmo. O apartamento de Ranelagh Gardens não é o mesmo sem ele. Neste tempo todo, tive nele um assistente incansável e incomparável, que deu ao blog os recursos que ele viu na melhor mídia britânica, links, slide-shows, vídeos etc. Antes de ir, me ensinou os truques, e confesso que adiei as aulas o quanto pude porque eram a admissão de que Pedro estava prestes a partir, atraído pela família, pelos amigos, pelo sol, pela volta à faculdade, pelo tênis e, claro, pelas brasileiras. Pedro digitalizou o pai.  Me lembro de Pedro chegando com casacos quentes quando achou que eu estava com frio, com o Wii quando achou que eu estava precisando me divertir com o Mario Kart, com um violão quando achou que eu estava precisando tocar e cantar.

Me lembro também dele chegando com uma rede de pingue-pongue, raquetes e bolinhas. Com isso improvisamos uma mesa na qual jogamos 380 partidas, anotadas, de direita e de esquerda, e também de direitas contra esquerdas com vantagem para quem jogava com a mão pior. Perdi de 193 a 187, depois de sair liderando com folga.  Na temporada européia, viajamos juntos bastante. Paris, onde cobri a queda do vôo da Air France e assistimos depois à vitória de Roger Federer em Roland Garros;  Roma e Perúgia, para investigar as estripulias sexuais de Berlusconi e o caso Amanda Knox, a estudante americana condenada a 26 anos pela morte da colega de quarto num aparente jogo erótico; Liverpool, claro, a terra dos Beatles, onde tomamos pints no Cavern e vimos um sósia australiano de John cantar I Feel Fine e dizer que Stand By Me, uma ode à amizade, era a canção favorita dele, John.  “Não chora senão eu choro”, me pediu Pedro em Heathrow, numa mesa do Café Nero, enquanto aguardava o embarque. “Obrigado por tudo, filho”, respondi.

Emir
A despedida de Emir

A última vez que fôramos juntos a Heathrow, em agosto, tinha sido de lascar: a missão era nos despedirmos de Emir e Camila, o primogênito e a caçula.  Antes de subir no minicab que nos levaria ao aeroporto, Emir fez questão de contemplar uma última vez o Tâmisa, que vejo daqui da janela, um gesto à altura do artista que ele é e do qual lembro sempre. Na noite anterior, como numa prece, compenetrado e olhos fixos, ele se despedira do luminoso de Piccadily e, por ele, de tantas coisas boas que Londres lhe trouxera, a começar por pessoas que fazem a cidade ser o que é. Voltamos, Pedro e eu, para casa com os olhos inchados, naquela ocasião. Agora, mais uma despedida, e engraçado como eu reconstituí, nos dias anteriores a ela, algumas vezes a volta de metrô quando Emir e Camila partiram para o Brasil, quietos nós dois ali no vagão, Pedro e eu, no esforço mudo de nos recuperarmos do desgaste de emoções. Pedro sempre me fez pedidos absolutamente aceitáveis; é objetivo, tem os pés no chão.

 

Mas este de Heathrow, mesmo com todo o meu estoicismo acumulado nas leituras de Sêneca, Marco Aurélio e Montaigne, era impossível de atender.