Publicado no Justificando.
POR ROBERTO TARDELLI, advogado e promotor de Justiça aposentado.
Abro aleatoriamente o portal da Secretaria De Assuntos Penitenciários de São Paulo, passo por dez, dentre as oitenta e três penitenciárias. Passo por outras mais e mais algumas constatando que, na média, estão com o dobro ou quase de superlotação.
Não somei quantas pessoas estão presas no estado, mas, certamente, estamos centenas de milhares de seres humanos, privados de liberdade, por ordem escrita de autoridade judiciária competente. O déficit nacional está em torno de 230.000 vagas. Em termos mais crus, são 230.000 pessoas que dormem amarradas ‘às próprias mãos, dormem com a cara no que seria o vaso sanitário, dormem no chão, entre ratos.
Está a cada dia mais fácil prender alguém. Há consagrados clichês, nem são necessários muitos, convertidos em jurisprudência dominante, para que qualquer carimbo com mais de cinco palavras sirva para a privação de liberdade, antes do trânsito em julgado (ou, ainda, antecipadamente, antes de uma decisão colegiada) da sentença penal condenatória.
Dois policiais militares. Nada mais do que dois policiais militares, ou, apenas um, basta para que a máquina de prender gente comece a funcionar. Essa máquina é ligada no calor das ruas: jovens – preferentemente, negros e certamente pobres – são abordados por policiais militares, por atitude suspeita; assim entendido acelerar o passo, quando se vê a viatura ou entrar em uma casa (pode ser até a cada onde moram), enfim, por qualquer quebra expectativa, seja pelo comportamento exteriorizado e julgado, seja pelo local em que se encontram.
Um jovem negro, caminhando em um bairro branco rico, já pode ser observado pela polícia, pode ser expulso do bairro por vigilantes particulares, forma moderna de jagunço; dois jovens negros serão abordados, mãos na cabeça e são suspeitos de alguma coisa; três jovens negros, já não há suspeita, mas certeza antecipada de culpa: esses serão parados, submetidos a busca pessoal e levados ao distrito, para que expliquem o que faziam por lá. Sempre ocorre de um dos policiais dizer ter encontrado com um deles uma pequena porção de droga, seja a droga que for.
Eram três, se a droga estava com um deles, um por todos e todos por um, a droga pertence a todos. Decerto não iriam usá-la tão somente, não mais havendo dúvidas de que são traficantes. São presos, não pela prática de um fato típico, mas por um juízo moral, calcado em velhos estereótipos. Está fechado o círculo condenatório e todos os agentes públicos estão certos que não há qualquer possibilidade de defesa a esses jovens. Se não lhes resta defesa, não haverá possibilidade de absolvição.
O promotor os denunciará e não raro fará constar do corpo de denúncia de que se tratavam de pessoas sem ocupação laboral lícita, nenhum deles possuindo qualquer razão para ali estar, o que torna claro que se associaram para fins de tráfico. O tráfico, todos sabem, ao lado da corrupção é crime que mais atinge a paz social. Ele acredita religiosamente na palavra dos policiais, nada questionando. Qualquer pedido de liberdade é negado, em face dos veementes indícios de autoria (a palavra dos dois policiais), sendo pedida a prisão preventiva do grupo, pela necessidade de resguardar o interesse público, abalado pela prática do crime, e, ainda, para proteger a população ordeira e honesta, sendo, ademais, dever do juiz impedir a fuga do acusados, que nada puderam alegar em seu favor. É um clichê.
O processo se torna inquisitorial e farsesco, eis que a palavra dos policiais será aceita sem reservas ou questionamentos por todos os julgadores que por passarem pelo processo, desde o juiz até os desembargadores. Não há mais qualquer possibilidade de contraditório e a pergunta que se fará aos réus inverte totalmente os valores processuais, uma vez que deverão os acusados provar que aqueles policiais teriam algum interesse em prejudicá-los. Como essa é uma prova impossível, a palavra dos policiais vira o mote principal do julgamento. Todos crêem no depoimento dos policiais, que será sempre considerados harmônicos e coerentes.
Tudo porque se aceita que vivemos sob uma guerra, A Guerra Contra O Crime, em que o mais importante é destruir o inimigo, disfarçado de cidadão comum. Ter onde colocá-lo com dignidade é outro assunto e não pode competir com a necessidade de se prenderem os criminosos, acabar com a impunidade, deixar a cidade livre para a sociedade ordeira e pagadora de impostos.
Tudo raso, pré-moldado, fácil, pronto em cada computador. Diante de alguma inconveniência, basta dizer que a superlotação carcerária não é problema dos juízes. Ou, ainda mais, em outro clichê, que a mera superlotação carcerária não é razão para concessão de liberdade para o réu. Mera lotação carcerária… Do lado de lá, gritam os promotores/procuradores que nada sobreleva a necessidade de combate ao crime organizado. Novo clichê, bastaria que não cometessem crimes, como me disse um proeminente procurador de justiça, responsabilizando o preso pela superlotação da cadeia onde se encontra.
A partir desse entendimento, dessa cultura punitivista, que alimenta egos e lota prisões, quebra-se finalmente o mais basilar dos conceitos: o da igualdade humana. Sim, todos acreditam e dizem-no sem pudor que eles(forma usual de referir-se ao preso) devem ser presos, trancafiados e tudo o que se aprendeu e o que se escreveu sobre prisão e dignidade humana é rasgado e desmoralizado.
As prisões se entopem de atitudes suspeitas. Estamos firmes, somos a quarta população carcerária do globo terrestre e prendemos 7,3 vezes mais que média mundial. Vamos ser os primeirões, em breve.
A primeira consequência é que o padrão de dignidade e autoestima descem a níveis negativos, transformando diretores de presídio em síndicos do inferno e os juízes em carcereiros de luxo, que nada mais fazem do que dificultar, no limite de suas forças, que alguém seja posto em liberdade. Se ocorrer de um juiz, isoladamente, acordar para isso, tornar-se garantista (uma espécie de falha no DNA de quem julga), sua desmoralização será certa e ele será apontado como alguém pertencente à rede do crime organizado. Seu crime: ter compaixão pelo próximo, fato típico, hediondo.
O vulcão da miséria estará sempre prestes a explodir. Facções criminosas são meras consequências, plantas daninhas nascidas no chão duro das dignidades negadas na prisão, regadas com nossa política assassina de combate ao uso de drogas.
Gente com doenças graves se amontoa, gente com tuberculose se amontoa, gente sem condenação se amontoa, gente que vai enlouquecendo um pouco por dia se amontoa até que, até que todos se transformam em feras e se devoram, sob o olhar passivo e ligeiramente feliz das forças de segurança, ou, sob tiros das forças de segurança, que matam muito mais do que qualquer outra doença no país.
Nessa falsa guerra, qualquer afirmativa em favor de direitos humanos é considerada um gesto de apoio ao crime organizado, falar em dignidade humana se tornou coisa de quem quer ver o país afundado na impunidade e na corrupção.
Aqueles dois rapazes não terão chance alguma. Os policiais disseram que eles lhes confidenciaram que eram traficantes. Ponto final da história, eles serão condenados e atirados ao sistema prisional, de onde, com sorte, sairão vivos. Por milagre, sairão sãos.