Publicado originalmente na ConJur
Parte significativa do encarceramento é responsabilidade dos juízes. É o que mostra em sua tese de doutorado Marcelo Semer, de 53 anos, juiz substituto da Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Segundo Semer, o fenômeno pode ser explicado com dois conceitos: pânico moral e estado de negação. No primeiro, os juízes veem no tráfico, um dos objetos de estudo do estudo, o pilar da grande criminalidade. Assim, quando se depara com condutas pequenas, o juiz continua a fixar penas altas e recusar minorantes.
A negação acontece quando o juiz, mesmo tendo conhecimento da realidade brasileira, confia quase que cegamente no depoimento policial. “A mesma informação que tem na mídia e nos processos sobre violência policial, o juiz ignora e avalia policial, pensando ‘só vou divergir do policial ou não confiar no policial se houver uma prova robusta contra ele’. Há um recolhimento seletivo desse senso comum”, explica Semer.
Formado pela faculdade de Direito da USP, Semer acaba de concluir seu doutorado na área de criminologia. Em seu trabalho, o juiz se debruça para analisar 800 sentenças sobre tráfico de drogas de 8 estados (São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraná, Goiás, Pará, Bahia e Maranhão). Seu foco era entender o papel do juiz na formação do grande encarceramento no Brasil.
Leia a entrevista:
ConJur — Setores da magistratura passaram a contestar o “mito do superencarceramento”. A teses é que, em números absolutos, o Brasil não prende tanta gente assim e que os levantamentos oficiais usam os presos no regime aberto para inflar a população carcerária. Faz sentido?
Marcelo Semer — Essa visão de que o encarceramento é um mito, é uma idiotice. O Brasil tem a terceira maior população prisional do mundo e recentemente passou a Rússia. A contestação de taxas relativas de encarceramento não é inteligente, considera uma tabela que calcula a taxa de encarceramento em relação à população do país. Por essa tabela, a primeira colocada na taxa de encarceramento é a Ilha de Seichelles, que tem uma população irrisória. O Brasil tem um índice carcerário alto se comparado aos países de grande encarceramento e não dá para compará-lo com os Estados Unidos nem com Seichelles.
ConJur — O senhor acaba de se doutorar com uma tese sobre o papel dos juízes no encarceramento. Qual é esse papel?
Marcelo Semer — O juiz tem uma enorme responsabilidade no encarceramento. Se não entendermos que parte significativa da responsabilidade é nossa, não há como resolver o problema. Sempre achamos que vamos resolver o problema construindo mais cadeia, mas os orçamentos são limitados.
Na virada punitiva, muitos autores do common law dos Estados Unidos e da Inglaterra narram que uma das questões que mais impactou o crescimento do encarceramento nos países foi diminuir a discricionariedade do juiz. Eles trabalhavam com penas livres no common law e, com isso, há um minimum mandatory sentence, ou seja, uma pena mínima. Na execução penal, há o dever de cumprimento de 85% da pena, a previsão de que três pequenas condenações levam a penas gigantescas etc. Essa redução da discricionariedade do juiz acabou produzindo penas muito excessivas.
ConJur — O mesmo acontece no Brasil?
Marcelo Semer — Esse não é o panorama brasileiro. Na Lei de Drogas, por exemplo, é exatamente o contrário. Embora não seja uma lei muito boa, ela permite maior discricionariedade do juiz para conceder benefícios e separar o grande traficante do micro tráfico. Os juízes, porém, não usaram esses benefícios. O que minha pesquisa mostra é que o juiz resiste o quanto pode a aplicar isso. Se nos Estados Unidos ou na Inglaterra existiu uma pressão forte que veio do estado político, ou seja, da lei que determinou que as penas fossem aumentadas, aqui não posso atribuir à legislação. A tese mostra que aqui em grande parte deve ser atribuída ao juiz.
ConJur — Por quê?
Marcelo Semer — Busquei, por meio das sentenças, ver o que o juiz faz. As sentenças são de 2013 a 2015. A lei abriu oportunidade para o juiz aplicar o privilégio, o redutor do tráfico, e há uma enorme construção de obstáculos para isso. Alguns juízes simplesmente não aplicam isso dizendo que é inconstitucional, outros porque acham que o réu não merece, outros, porque as quantidades de drogas são altas, mesmo não havendo critério algum. Outros aplicam, mas em patamares menores, de modo que isso acaba não produzindo o resultado que se imaginava.
O Supremo tomou duas decisões importantes, de que a proibição de conceder penas restritivas de direitos e a obrigatoriedade do regime inicial fechado são inconstitucionais. Minha pesquisa foi feita depois das decisões. Vi que há enorme resistência dos juízes, especialmente os de São Paulo, a aplicar os paradigmas do STF. Isso provoca um grande encarceramento.
Portanto, o que o Supremo vai fazer 15 anos depois, os juízes já poderiam fazer direto na sentença. Então há uma omissão dos juízes nesse ponto. Por isso não dá pra dizer que há um grande encarceramento porque existe uma lei de drogas muito severa.
ConJur — A tese fala de pânico moral e estado de negação na formatação do papel do juiz como “agente encarcerador”.
Marcelo Semer — São dois conceitos trabalhados pelo sociólogo sul-africano chamado Stanley Cohen. O pânico moral explica um pouco porque os juízes fixam penas altas em relação ao tráfico de drogas, se recusam a aplicar as minorantes, deixam prisões preventivas praticamente absolutas, baseados no fato de que o tráfico é um elemento central, gravíssimo, que corrói a sociedade e a humanidade, ruína toda a família etc etc. A ideia de que o tráfico é o pilar da grande criminalidade, portanto, mesmo quando o juiz se depara com condutas pequenas, que é a maioria do nosso trabalho, ele continua aplicando essa lógica que é a lógica do pânico moral, a lógica do alarde, do exagero, da criação do inimigo público.
O estado de negação é o de que como juiz, mesmo ciente de todos os percalços que há com a polícia, de todas as acusações, de todos os índices de violência altíssimos, praticamente terceiriza a prova da droga na mão dos policiais, como se eles fossem os agentes da Justiça e tivessem a plena confiança.
Os juízes quando olham para os traficantes costumam trazer para si todo aquele entorno de senso comum que é visto na televisão. “Olha, há muita violência no tráfico, portanto aquele que foi pego com uma grama vai ficar preso porque ele está dentro dessa grande estrutura”. Por outro lado, toda a mesma informação que tem na mídia e nos processos sobre violência policial, o juiz ignora e avalia policial, pensando “só vou divergir do policial ou não confiar no policial se houver uma prova robusta contra ele”. Há um recolhimento seletivo desse senso comum.
ConJur — O peso que os flagrantes têm no sistema não é sintoma da ausência de investigação policial?
Marcelo Semer — Total. Na tese, os números mostram que o índice de prisões com base em flagrantes chega a 89%, e quase nada de investigação. Considerei “investigação” qualquer medida investigativa formalizada, como busca e apreensão ou interceptação telefônica. Esse último atingiu a 3%. Ou seja, não trabalhamos com o grande traficante. Os níveis de apreensão de drogas são relativamente baixos. Considero grandes apreensões acima de 10 quilos. Encontrei 20 casos em 800 e, mesmo nesses casos, os réus são primários, há pouca coautoria, pouca apreensão de dinheiro. Qual é o impacto disso para combater a macro criminalidade? Nenhum, absolutamente nenhum. Estamos engrandecendo o encarceramento sem ter nenhum impacto na criminalidade, é por isso que ela continua crescendo.
ConJur — Os juízes têm se preocupado mais com segurança pública do que com a jurisdição?
Marcelo Semer — Chego à conclusão de que uma parcela grande dos juízes tem se preocupado mais com a ordem do que propriamente com a lei. O juiz está se inserindo erroneamente nas funções de segurança pública. Uma das fontes que me permite dizer isso é o trato que o juiz tem em relação à prova policial. A prova do tráfico de drogas é majoritariamente fincada na declaração dos policiais. Os juízes colocam os policiais numa forma absolutamente abstrata, como pessoas honestas que fizeram seus concursos e que defendem a lei e a ordem e, portanto, devemos acolher suas manifestações, ignorando que vivemos no país onde existe maior violência policial contra civis do mundo.
ConJur — O entendimento fixado nas decisões é o mesmo no país inteiro ou varia por estado?
Marcelo Semer — Há uma grande divergência nas decisões dos juízes nos estados. Pelo estudo, em São Paulo os juízes aplicaram 90% regime fechado, enquanto a Bahia ou Maranhão estão por volta de 30% em regime fechado. Fiz uma pesquisa de confirmação com os tribunais também, mas dá mais ou menos uma transparência de 80% a 90%, de modo que os tribunais mantêm as decisões dos juízes com poucas alterações.
Os estados maiores, como São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul ou Paraná aplicam menos as jurisprudências dos tribunais superiores do que os estados menores. Fora da minha pesquisa, há uma ruptura bem conhecida entre as decisões do STJ e as do TJ de São Paulo.
ConJur — Um argumento que costuma surgir nas discussões sobre criminalidade é que o sistema processual penal tem recursos demais, o que favorece a impunidade. Temos mesmo muitos recursos?
Marcelo Semer — Não vejo nisso um problema. O que percebo é que houve certa regionalização da jurisprudência. Um réu por tráfico, com as mesmas circunstâncias, pode pegar cinco anos no regime fechado em São Paulo ou três anos no regime aberto na Bahia. Isso é aceitável nos Estados Unidos, onde há leis regionais, mas não no Brasil, que tem uma legislação unitária. Um dos dados que vai agravar essa situação é justamente a ideia da prisão em segundo grau.
ConJur — Por quê?
Marcelo Semer — Porque ela deixa cada vez mais distante a uniformização dos tribunais com a jurisprudência dos tribunais superiores. Ela cristaliza as decisões dos tribunais de cada estado.
ConJur — O que acha da execução antecipada da pena?
Marcelo Semer — A prisão automática em segundo grau é inconstitucional. Considerando a realidade multiforme do país, ou seja, muito diferente em cada estado, a prisão em segundo grau arrebenta com toda a ideia de nacionalização da lei brasileira, porque aceita um regime típico norte-americano, só que sem um estado federativo de nível avançado como eles têm.
Além disso, vejo que vai contra nosso histórico de construção das reformas do Judiciário. Em 1988, foi criado o STJ para uniformizar a interpretação da lei federal e tirar isso da mão do Supremo. Em 2004, com a reforma do Judiciário, houve vários mecanismos de nacionalização, como o CNJ. Outro mecanismo é o fortalecimento do Supremo, com as ADPFs ou e a súmula vinculantes. Ou seja, foi sendo aumentada a nacionalização. E a prisão de segundo grau valoriza as jurisprudências locais.