Publicado originalmente na Ponte Jornalismo
Por Caê Vasconcelos
“Eles mandam tirar as roupas e vão jogando todo mundo pelado para os lados, não querem saber de nada. Botam os caras tudo de bunda no chão e é cacete na moleira”, relata um preso ouvido em uma série de três vídeos sobre o Complexo Penitenciário da Papuda, no Distrito Federal. Os vídeos denunciam que, durante a pandemia de Covid-19, os presos foram submetidos a tortura, fome e humilhações.
A série “A pandemia no sistema penitenciário do DF” foi produzida pelo Infovírus, um observatório sobre a situação do coronavírus nas prisões brasileiras, criado em abril por pesquisadores da UnB (Universidade de Brasília), UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), Unicap (Universidade Católica de Pernambuco), UEFS (Universidade Federal de Feira de Santana), Uneb (Universidade do Estado da Bahia), UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e UFSM (Universidade Federal de Santa Maria).
Em um dos vídeos, um egresso do sistema prisional conta as torturas que sofreu dentro do presídio. “Eu me senti um cachorro em um canil imundo”, define. “As polícias batiam e humilhavam. Eles vão para lá só para quebrar a cabeça dos ladrão, entram com um galão de mais de 20 litros nas costas e metem gás mesmo. Eles ameaçam os presos para não falar nada para a família. Eles falam ‘se falar alguma coisa, tá encrencado’.”
Um familiar completa: “Os presos falam para não denunciar, porque cada vez que a gente denuncia piora as torturas. Eles têm que pagar, sim, mas desse jeito não tem como, eles estão sendo muito oprimidos lá dentro”.
Com as visitas suspensas no período de pandemia, argumentam os pesquisadores, a situação dentro do cárcere piorou. Com a proibição de os familiares entregarem “jumbos”, os pacotes com alimentos, produtos de higiene pessoal e remédios, muitos presos passaram a sofrer privações.
“A gente sabe que os familiares são fundamentais para levar comida, medicamentos, roupa de cama, material de higiene para as pessoas que estão presas. Na medida em que você suspende as visitas e não cria mecanismos de substituir essas necessidades, você as deixa em total de situação de desamparo”, explica Felipe da Silva Freitas, doutor em direito pela UnB e também coordenador do projeto Infovírus.
Segundo o levantamento feito pelo Depen (Departamento Penitenciário Nacional), vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Brasil registrou 40.534 detecções, 137 óbitos e 38.354 recuperados dentro dos presídios brasileiros até 24 de dezembro.
No Distrito Federal, no mesmo período, foram registrados 1.928 detecções e 4 óbitos. O Depen aponta que a população carcerária do DF é de 15.050 presos e presas e que, dos infectados pela Covid-19, 1.1918 se recuperaram.
Em entrevista à Ponte, Camila Prando, professora da UnB (Universidade de Brasília) e coordenadora do Infovírus, explicou que este é exatamente o motivo pelo qual o projeto focou no DF: o elevado número de infecções. “A justificativa feita pela administração prisional e pelo TJ-DF [Tribunal de Justiça do Distrito Federal], para o elevado índice de contaminação, foi a de que estaríamos sendo eficazes na aplicação de testes. O que é falso”, afirma.
“Embora o DF tenha aplicado mais testes do que as outras unidades estaduais, aplicamos um número de testes muito pequeno para dizer que existia uma eficiência na aplicação de testes para justificar o número de pessoas infectadas. O número de testes foi abaixo de 15% da população prisional”, completa.
Para Felipe, o Estado falhou no combate ao coronavírus dentro dos presídios. “A pandemia dentro dos presídios é uma tragédia”, define. “É um cenário de muita preocupação, porque não se desenvolveram essas três linhas fundamentais: prevenção com liberação de pessoas presas em superlotação, não teve transparência para com os familiares e não se realizou testagem em massa”.
Com a volta das visitas, mesmo que on-line, os casos de tortura começaram a ser denunciados. “Nos vídeos é possível ver que há uma pandemia nas prisões para além da pandemia, a da violência. Tem os efeitos pandêmicos ali dentro, que são graves, severos e a nossa preocupação é que eles permaneçam, de que essa gestão que está se colocando como uma gestão da ‘saúde’, que é um discurso novo, permaneça e provoque alterações permanentes na questão das visitas e na entrada de produtos”, aponta Camila Prando.
Camila também lembra que o sistema prisional enfrenta, historicamente, outras doenças além da Covid-19, como a tuberculose. “As administrações prisionais, estaduais e federais, fizeram muito pouco e fizeram mal. Mantiveram aglomerações em situação estrutural de insalubridade e precariedade, sem assistência de saúde adequada. Essa combinação foi bem dramática”, diz.
Duas semanas antes de lançar a série, explica Camila, o Infovírus informou o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura sobre as denúncias. O Mecanismo, então, notificou várias entidades e organizações do DF, dentre elas a Vara de Execução, a Secretaria de Administração Penitenciária, o núcleo de execução penal do Ministério Público e a Defensoria Pública.
“O que o Mecanismo teve de retorno até agora foi uma primeira inspeção que a Defensoria fez em uma das unidades, mas que não detectou nada em relação à violência, que é muito difícil de ser detectada. Como a série mostrou, essas violências são feitas junto com ameaças para que não seja denunciado”, avalia a coordenadora.
Para Felipe Freitas, se o Estado tivesse garantido o acesso das famílias aos presos, um programa de testagem de qualidade em massa e cumprido a Resolução 62 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), de prisão domiciliar para presos no grupo de risco, a realidade poderia ter sido diferente.
“O contato transparente com os familiares teria evitado situações de violação de direito dentro das unidades. A situação piorou porque as pessoas, dentro e fora do sistema prisional, ficaram desesperadas”, argumenta o coordenador.
“O principal, e mais efetivo, era cumprir a resolução 62, em especial o que diz respeito à transferência de presos para prisão domiciliar ou da liberação daqueles e daquelas que pudesse processualmente se beneficiar desse direito”, finaliza.
Outro lado
A reportagem procurou a Secretaria de Administração Penitenciária do DF e aguarda retorno. Também questionamos o Ministério Público e a Defensoria Pública sobre o recebimento das denúncias.