“Estar na equipe de transição é defesa do legado de Marielle”, diz Anielle Franco

Atualizado em 11 de dezembro de 2022 às 19:09
Anielle Franco
Foto: Reprodução

Por Edison Veiga – DW

Integrante do grupo temático que trata de políticas para mulheres na equipe do governo de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, Anielle Franco soma sua própria bagagem com um aspecto profundamente simbólico: trazer para a pauta o legado de sua irmã, Marielle Franco (1979-2018), ressoando o “Marielle presente” que desde março de 2018 ecoa em eventos políticos e manifestações pelo Brasil.

Naquele 14 de março, a socióloga e vereadora carioca, engajada em questões feministas e raciais, foi brutalmente assassinada no Rio — até hoje o caso não foi completamente esclarecido, já que o mandante e as motivações não foram identificados pela Justiça.

“Estar dentro da equipe de transição já é uma defesa do legado e da memória da Mari”, comenta ela.

Anielle admite que a tragédia que abalou sua família e o país fez dela uma nova mulher. Formada em jornalismo e inglês pela Universidade da Carolina do Norte e letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ela tem dois mestrados e atualmente é doutoranda em linguística aplicada na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Dirige o Instituto Marielle Franco, organização criada pela família de Marielle com o objetivo de empoderar mulheres negras, LGBTQIA+ e de periferia.

“A Anielle de antes [da morte de Marielle] olharia para a de hoje e diria: ‘nossa, como você evoluiu’”, comenta ela. “Não tinha como ser a mesma depois dessa perda.”

Neste domingo (11/12), Anielle Franco lança na Festa Literária das Periferias (Flup), o livro Minha Irmã e Eu, uma coletânea de textos intimistas que ela vem escrevendo desde a morte da irmã.

Ela concedeu entrevista à DW Brasil.

DW Brasil: Em abril de 2018 você escreveu um texto, agora publicado em livro, chamado “Quem Era Você?”, para sua irmã. Quero começar perguntando então: quem é você, Anielle Franco?

Anielle Franco: Eu sou Anielle, sou mãe de duas meninas, sou doutoranda em linguística aplicada, sou diretora do Instituto Marielle Franco, sou uma mulher negra que veio da Favela da Maré, sou casada, amo jogar vôlei. Sou essa pessoa que luta pelo que quer e sonha acordada, mas trabalhando com aquilo que pensa.

A você antes da morte de sua irmã é diferente da você depois da morte de sua irmã?

Sim, Anielle de antes da morte é uma outra Anielle. Porque a Anielle precisou amadurecer, amadureceu muito amadureceu mesmo no dia a dia, no perrengue, no choro, na tristeza, na saudade, mas também na vontade de lutar e de crescer e de galgar dias melhores para si, para minha família, para minha mãe e para minha sobrinha, por exemplo. Sim, a Anielle de antes [da morte de Marielle] olharia para a de hoje e diria: “nossa, como você evoluiu”. Não tinha como ser a mesma depois dessa perda.

Você foi chamada para integrar o governo de transição de Lula-Alckmin. Qual é seu papel nessa equipe? De que maneira os ideais defendidos por sua irmã, Marielle, estão presentes nesse processo?

Estar dentro da equipe de transição já é uma defesa do legado e da memória da Mari. Tem sido um desafio enorme, de muito trabalho. Mas tem sido muito prazeroso pensar e pautar políticas públicas para mulheres, negras principalmente, que é o que a gente mais tem feito, de maneira muito firme, muito dedicada e muito focada nos nossos e nas nossas.

No prefácio do livro, escrito pela jornalista Maju Coutinho, fica dito que sua escrita foi algo que surgiu “para acalmar”. Como escrever esse diário, que no início parece um diário mas logo assume um gênero que mais se assemelha a cartas para sua irmã, ajudou você a superar essa tragédia? Você segue escrevendo?

Super. Você tem toda a razão: eu comecei escrevendo meio que para tirar a dor, a raiva e a saudade, e aí acabou se transformando em outras coisas, né? Eu acho que a escrita me acompanha há muitos anos. Tenho certeza de que tem me feito uma pessoa mais leve. Quando estou triste, cansada, com saudade, quando estou feliz, eu escrevo. Eu gosto de escrever. Então esse livro e todos os outros textos que eu tenho feito desde 2018 têm me ajudado muito a amadurecer e a elevar a pessoa que eu tenho sido nos últimos tempos.

Desde que sua irmã foi assassinada, muitos, inclusive grandes formadores de opinião, têm publicado diariamente a pergunta, nas redes sociais: “quem matou Marielle, e por quê?”. Quase cinco anos depois, qual sua resposta para essa pergunta? Por que, afinal, Marielle foi assassinada?

Eu não saberia lhe responder o porquê. A gente tem desconfianças, por tudo o que ela representava, da luta, da força, da coragem… Mas quem mandou matar, eu espero que um dia a gente possa sim obter essa resposta, né? Porque foi um crime muito bem arquitetado, como a gente sempre fala. Eu tenho focado muito nos dias em que a Mari esteve viva comigo, mais do que na contagem da morte. Mas eu entendo também o quão importante é esse marco… Quase cinco anos… É quase meia década de espera sem saber, sem entender a verdadeira faceta que está por trás desse crime.

Acredita que um dia o caso será completamente esclarecido? As pessoas envolvidas serão punidas?

Sim, eu acredito que um dia possa ser esclarecido e que a gente possa punir as pessoas que fizeram esse crime, que a gente possa, sim, ter paz e saber que cada luta nossa valeu a pena. E que, infelizmente, a Mari não está mais aqui com a gente mas que a gente lutou até o final para garantir justiça por ela.

Em alguns momentos do livro você fala que era importante transformar o luto em luta. Em seu caso, como isso ocorreu?

Acho que o luto virou luta muito, né? Em todos os momentos: momentos de dor, de saudade, de raiva. A gente não teve muita escolha. O luto teve de ser ali o nosso combustível diário. E ele se transformou em algo coletivo, porque é isso, a Mari teve uma comoção gigante no velório e a gente estava ali enquanto família legitimando aquela dor mas também pautando [o debate]: quantas outras pessoas já não haviam morrido ou perdido os seus e as suas infelizmente…

De que maneira seu trabalho hoje, seja à frente do instituto criado para honrar o legado de sua irmã, seja no governo de transição, é o que a própria Marielle faria?

O meu trabalho no instituto tem sido reconhecido e tem sido muito gratificante porque muitas mulheres hoje olham para a gente como voz, como protagonista, como liderança. E sabem que a gente está ali para fazer algo maior do que a gente, maior do que a gente possa imaginar sequer. Isso é muito gratificante. Estar ali como diretora e fundadora, poder representar a família, representar a Mari, tem sido para mim dias muito cansativos mas também muito importantes.

Eu sei que eu não chego sozinha a lugar nenhum que eu for. Eu sempre vou chegar com outras pessoas e com o legado da Mari, a memória, a minha família. Enquanto tiver saúde e sangue correndo pelas minhas veias, vou estar a frente desse legado, pautando, lutando e, sim, fazendo com que as coisas ganhem uma proporção do tamanho que elas merecem, que as mulheres negras entendam que podem ser protagonistas de suas vidas e de suas historias sempre que quiserem.

Publicado originalmente em Brasil de Fato

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