Sem o mesmo apelo de seu parça Jair Bolsonaro sobre a periferia evangélica, menos numerosa, mas crescente na Argentina empobrecida, o presidente de ultradireita argentino Javier Milei já pegou a deixa: está ali seu bolsão político, gente conservadora e anticomunista (ou antiperonista, na versão local da paranóia antipetista), que conquistada pode ser o fiel da balança com os católicos, maioria no país. Se somarmos a isso os influentes judeus, Milei tem seu mapa eleitoral-político.
“Tenho acompanhado com atenção como Milei tem se mostrado religiosamente”, relata ao DCM o pesquisador Ronaldo de Almeida, coordenador do Laboratório de Antropologia da Religião da Unicamp e pesquisador do Cebrap (Centro Brasiliro de Análise e Planejamento). “Vejo muitas performances com a simbologia judaica, cuja presença na Argentina é bastante significativa. O enfoque no judaísmo atrai um sionismo do meio evangélico”.
Nenhum outro país na América Latina acolheu tantos judeus europeus em fuga do nazismo quanto a Argentina. Até hoje, a cultura judaica marca o dia a dia do país, especialmente o de Buenos Aires. A capital argentina possui a maior concentração judaica do país, com 250 mil integrantes da comunidade, isto é, 8% da população total portenha. No total, a comunidade judaica argentina, a maior da América Latina, é a sétima maior do mundo fora de Israel.
“Milei, consciente ou inconscientemente, mobilizou a sociedade argentina. Milei se diz católico, mas tem uma vocação mística pessoal. Mas a questão é seu projeto secreto, como ele vê a relação entre voto e fé. A Argentina, não sendo judia, viu no judaísmo um valor, e isso pesa”, diz o professor.
Tradicionalmente uma nação de forte maioria católica, a Argentina passa também por uma mudança na sua configuração religiosa que lembra a do Brasil. “Ninguém na Argentina está preparado para tudo de ruim que está por vir”, diz ao DCM o sociólogo e antropólogo argentino Pablo Semán, especializado em religião e cultura popular.
Ele vislumbra um pacto passional como os argentinos, que já foram peronistas, mas encontrararam em Milei seu candidato ideal: é anti-comunista ferrenho e tem a pauta conservadora dos sonhos. De quebra, promete transferir a administração da assistência social dos grupos que atualmente a têm para outros, e é aí que esses pastores poderiam se encaixar.
“Libertário”, Milei avilta publicamente o Papa Francisco – argentino, de Buenos Aires -, a quem já chamou de “homem do diabo na Terra” -, ao mesmo tempo em que tem conselheiros de outras religiões, um evangélico e outro rabino, “para orar por sua gestão”.
No campo evangélico, o confidente de Milei é o pastor evangélico Christian Hooft, presidente da ACIERA, Aliança Cristã de Igrejas Evangélicas da República Argentina, que entre os hermanos representa mais de 15 mil congregações no país.
Embora católicos, anglicanos, rabinos e até um representante da comunidade islâmica tenham sido convidados para a cerimônia inter-religiosa na Catedral de Buenos Aires após sua posse no Congresso, Milei mirava a ACIERA. “Deus diz a você: Argentina, não tenha medo, levante-se”, disse o pastor Hooft, que, após trocar afagos com Milei, prometeu que todas as suas igrejas vão orar, conforme manda a Bíblia, “por todo o seu gabinete de ministros”. Não é uma mensagem qualquer.
O apoio evangélico a Milei acontece apesar de ele não se encaixar no molde típico de um candidato religioso. Conhecido por sua linguagem grosseira e falta de frequência a eventos religiosos, afirma se comunicar mediunicamente com seu cachorro falecido, Conan. Essa incongruência sugere que o apoio dos evangélicos a Milei não se baseia em afinidades religiosas, mas sim em um forte rechaço à esquerda.
E aí está o pulo do gato. De acordo com a última Pesquisa Nacional sobre Crenças e Atitudes Religiosas, o número de argentinos que se identificam como cristãos evangélicos passou de 9% em 2008 para 15,3% em 2019, números que estudiosos hoje admitem passar de 20%.
Paralelamente, a parcela da população que se identifica com o Catolicismo caiu de 76,5% para 62,5% no mesmo período, uma queda livre, como a que experimentamos aqui. Um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), mostrou que em 2021, as 87,5 mil igrejas evangélicas com CNPJ representavam sete em cada dez estabelecimentos religiosos formalizados no país, enquanto católicas eram 11% do total. Um salto e tanto em relação a 1998, primeiro ano contemplado na pesquisa. Os locais de culto evangélicos somavam, então, 26,6 mil, ou 54,5% do todo.
Como Bolsonaro, Milei também explora a ideia de, além do poder dado pelas urnas, ter um mandato divino. O argentino, que estuda a Torá, costuma citar frases bíblicas e às vezes o faz em hebraico. Assim como Bolsonaro, Milei se declara católico, mas vai a eventos evangélicos com frequência. Não se conhece nenhum conselheiro de Milei que seja Testemunha de Jeová. Para eles, o fim do mundo está próximo. Para os argentinos, o inferno ainda dura mais pelo menos quatro anos, mas pode acabar antes.