Publicado originalmente no Justificando
POR LUANA JULIÃO, doutoranda em Filosofia Francesa Contemporânea pela Universidade Federal de São Carlos e professora de História e Filosofia na Escola Estadual Visconde de Itaúna
Esse mês dois episódios, um com alunos na escola onde eu leciono e outro na minha família, fizeram emergir em minha consciência memórias longínquas, reacendendo em mim o desejo de escrever sobre algo que é quase tabu de se dizer numa sociedade onde embora as pesquisas[1] atestem que o Brasil é um país racista, as pessoas se autodeclaram como não racistas: o racismo dentro das famílias.
O primeiro evento trata-se de dois alunos que são meio-irmãos por parte de mãe. O mais velho tem 15 anos e o mais novo três anos a menos. Ambos são filhos de uma mulher negra de pele bem escura, mas o mais novo, por ter um pai branco, tem a pele bem mais clara que o irmão mais velho, que tem a cor da pele igual sua mãe. Essa diferença na tonalidade faz com que o irmão mais jovem se ache no direito de ofender e humilhar racialmente o irmão mais velho. Chamei a atenção do mais novo, dizendo que o ele fazia era racismo e que ele também, embora tivesse a pigmentação da pele mais clara que a do irmão e quisesse esconder sua negritude – seus traços físicos (nariz largo, cabelo crespo) o delatavam – é negro.
“Não sou macaco, nem feio como ele”, foi o que ele me respondeu friamente, virando-me as costas e revirando em mim lembranças da infância e da adolescência em que situações parecidas com essas também estavam presentes.
Na mesma semana, um segundo episódio veio a corroborar o primeiro: o nascimento da minha sobrinha. O fato é que o nascimento desse novo membro familiar trouxe à tona uma ansiedade antiga no âmbito doméstico: o fenótipo do bebê. Uma angústia implícita pairava no ar: se ela herdaria os traços da minha irmã (afrodescendente) ou se herdaria os traços do pai (branco). Essa inquietação em saber a tonalidade da pele, o formato do nariz, o tipo de cabelo fez com que minha memória abrisse as portas para lembranças antigas e dolorosas, me fazendo pensar sobre algo que apesar de ser tão claro eu nunca compreendi direito e que talvez por não compreender eu sempre reprimi: o racismo nas famílias inter-raciais.
Eu tinha entre quatro e cinco de idade quando comecei a sentir na pele a violência racial. Sim, com cinco anos de idade, embora eu ainda não soubesse elaborar racionalmente o que acontecia, eu já tinha a percepção e um desconcerto na alma de que os meninos preferiam dançar quadrilha com as meninas brancas, que os papéis mais importantes nas apresentações escolares ficavam para as crianças loiras e de olhos claros e que a minha cor e o meu cabelo crespo eram alvo de insultos – camuflados como brincadeiras – por parte dos coleguinhas de sala. Insultos estes que eram negligenciados e ignorados através do silêncio das professoras (as “tias”) e toda a equipe da escola, que envernizavam todas essas ofensas como “coisas de crianças“.
Quero chamar a atenção, aqui, para a violência racial nas famílias inter-raciais, pois quando as hierarquias raciais se reverberam também no mote familiar, evadindo o palco social e adentrando também nos lares, visualizamos também, embora à primeira vista pareça inadmissível, o racismo presente na esfera mais íntima e primeva do indivíduo. Consequentemente, vislumbramos que a família (esse grupo de pessoas com parentesco e ancestralidade em comum) atribui a cada um dos seus membros um significado determinado e atravessado pelo contexto histórico e social que intervém no convívio afetivo entre os seus componentes.
Durante a minha infância o meu cabelo era bem crespo, “difícil de pentear”. Em meados da década de 1980 não havia no Brasil essa pluralidade de cosméticos que há hoje para os cabelos afros (ou se havia, eram caros demais). Minha mãe (descendente de índios e portugueses), que sempre teve o cabelo muito liso, escorrido, não tinha paciência para pentear o meu cabelo “duro” e “rebelde”, como ela mesma se referia a ele. Todos os dias, antes de ir para escola ela tentava “domá-los” e todos os dias eu chorava ao sentir dor por ter meus cabelos puxados e agredidos por uma escova e um pente feitos para pentear cabelos lisos. Quanto mais eu chorava, mais ela os puxava e mais ofensas eram dirigidas a eles e a mim, como se eu fosse a culpada de ter o cabelo “ruim” e de ter geneticamente herdado em maior grau os traços negros do meu pai e da minha avó paterna, negra retinta.
Até que um dia, furiosa por tentar amansar inutilmente o meu cabelo, ela pegou a tesoura e o cortou bem curto, quase a zero. Cheguei na escola chorando. Nesse dia, meus coleguinhas da escola não riram mais do meu cabelo “duro”, mas sim da ausência dele, pois agora, segundo eles, eu parecia um menino. Nesse dia eu ganhei um novo apelido: Pelé– alcunha que me perseguiu até os meus cabelos crescerem de novo. Por um milagre capilar inexplicável, desse dia em diante meus cabelos cresceram um pouco mais lisos, mais maleáveis à escova e o pente e “mais bonitos”. Inclusive, esse é o discurso que minha mãr usa até hoje para legitimar a violência que infligiu aos meus cabelos.
Minhas duas outras irmãs nasceram com a pigmentação da pele mais clara e com os cabelos mais fáceis de pentear. Esses momentos “banais” para elas não tiveram o mesmo sofrimento despendido a mim.
Eu cresci numa família em que os casamentos inter-raciais são bastante comuns, de maneira que nas festas e reuniões familiares é habitual encontrarmos parentes de pele branca ou com diferentes tonalidades da pele negra[2]. Minha avó paterna, que foi filha de escravo, tinha a pele bem preta, bem retinta. Já o meu avô paterno era italiano e tinha a pele branca e os olhos azuis. Dos cinco filhos que eles tiveram juntos, alguns puxaram mais para a cor dela e outros mais para a cor dele. A mesma variedade na pigmentação da pele aconteceu com os netos, meus primos.
O fato é que nessas reuniões e encontros familiares, principalmente durante a minha infância, primos e primas, irmãos e irmãs, tios e tias zoavam “naturalmente” com a cor da pele e o cabelo um dos outros, de maneira muito parecida a que eu presenciei entre os meus dois alunos. Frases como “seu cabelo parece um bombril”, “raça ruim”, “macaca”, “encardida” denegriam as características fenotípicas de uns, para exaltar o “branqueamento” de outros. Era a parte mais-branca da família discriminando, rejeitando, excluindo, denegrindo a parte não-branca ou aqueles que não-são-tão-brancos. Esses que proferiam frases preconceituosas aos mais escuros autodefiniam-se como morenos, moreninhos, moreno-claro, moreno-escuro, cor de jambo ou qualquer outro eufemismo que abrandasse sua própria negritude. Era a branquitude (embranquecimento) que era valorizada. Quando uma mulher da família aparecia grávida era comum torcer para que o novo ente herdasse o fenótipo do meu avô: branco de olhos azuis. Era a cor dele almejada como ideal de beleza.
Via-se, portanto, os mesmos significados enrijecidos pela sociedade e internalizado em nós como hábitos e formas de interpretar o mundo reproduzidos nos vínculos familiares e de afeto. Minha família apropriava-se dos significados sociais racistas e da ideologia do embranquecimento e, guiando-se em valores e ideais brancos, desvalorizava o mundo, a cultura e os sujeitos negros.
Hoje eu entendo a dificuldade em assumirem-se como negros num país em que os privilégios são dirigidos aos brancos e àqueles de pele mais clara. Desde pequenos, inconsciente, já sabemos que no Brasil a cor da pele adquire conotações e privilégios distintos, uma vez que quanto mais traços negros você tem, ou seja, quanto mais escura for a sua pele, mais exposto ao racismo você está[3].
Num país em que a pele preta carrega o estereótipo da inferioridade, da dor, do menosprezo e da discriminação não nos espanta o fato dos afrodescendentes não saberem o que ou quem são (suas raízes, suas lutas) ou de desejarem não ser o que são (embranquecimento ou branqueamento forçado).
Em minha família a identidade negra adquiria conotações negativas tal como eram exibidas fora do âmbito familiar. Ou melhor: era pior porque não era algo que estava fora, que se podia enxergar obliquamente, ou seja, as ressonâncias e sequelas não eram impessoais ou exteriores, se assim podemos nos expressar. Não era um racismo camuflado, pintado com as nuances da falaciosa “democracia racial”. Eram pessoas íntimas, que declamavam ofensas travestidas de afeto e proximidade nas situações mais banais e cotidianas, tais como pentear o cabelo, varrer a casa, brincar, desenhar, cozinhar, escovar os dentes, etc. Diante disso, era bastante comum comigo e com outras pessoas da família a não aceitação, a rejeição de sua autoimagem, das suas origens, da sua cor, do seu fenótipo. Era o racismo ferindo, “mordendo” e deixando cravada a sua marca.
É preciso lembrar que o Brasil o encerrou um período de mais de 350 anos de escravidão há pouco tempo, mais especificamente há 130 anos. Esse passado não tão longínquo ainda pesa sobre os ombros dos descendentes desses escravos, pois o negro ainda está associado à servidão, à escravidão, à exclusão afetiva, sexual, social, política, estética e intelectual. Enraizado em nossa sociedade, uma vez em que o Brasil nasceu submetido à violência racial, o racismo enquanto sistema estruturante das sociedades, abarca todos os aspectos e instituições da vida social, inclusive a família. Logo, não é difícil concluir que não há qualquer forma social que não seja atravessada pela ideia de raça e sua hierarquização. Há nas famílias brasileiras aquele mesmo racismo característico da nossa sociedade: silencioso, quase imperceptível, no entanto, inaudito, que desperta sentimentos pungentes em suas vítimas.
É preciso lembrar também que “ao contrário das experiências norte-americanas ou sul-africanas que estabeleceram regras claras de ascendência mínima para definir seus grupos sociais, nas quais, por exemplo, uma gota de sangue negro era mais que suficiente para macular a suposta pureza racial dos brancos[4]”, no Brasil o racismo sempre operou de maneira distinta e peculiar, uma vez que não é árvore genealógica do indivíduo que apontará aquele que deve ser excluído e humilhado, mas sim a pigmentação da pele, ou seja, criou-se essa ideia de “parcialmente negro, “pardo mais escuro”, “pardo mais claro”. Ademais, sempre se afirmou a interação “pacífica” entre brancos e negros e a ideia de que não há distinções entre eles. Essa astúcia em se negar o racismo no Brasil fez com que durante muito tempo os próprios negros se calassem em relação à negação de direitos, significado e afeto.
Durante a minha adolescência, o meu sonho era estampar a capa da revista Capricho. Era um sonho tão grande que durante anos eu e minha prima, que tem a pele mais clara, procuramos agências de modelos. A oportunidade de fazer testes eram mais frequentes a ela, as recusas dos poucos testes que eu fazia eram mais frequentes a mim, no entanto, eram as comparações de beleza, sustentadas em características raciais ressaltadas, que a minha família fazia entre nós duas o que mais doía em mim.
As agências alegavam que o meu nariz era muito largo, a boca grande demais, o cabelo muito crespo. “Se você fosse um pouquinho mais clara”, uma vez um booker me disse. Essa frase reverberou em mim durante muitos anos da minha juventude e me roubou finais de semana na piscina e na praia, pois me fez veemente detestar a possibilidade de eu tomar sol e ficar ainda com a pele mais escura.Todos os dias eu media o meu nariz para ver se ele havia diminuído com o prendedor que eu colocava nele ao me deitar para dormir.
Eu era aquela me olhava no espelho e me sentia feia, muito feia e mal-amada, desmerecedora de afeto. Eu era aquela era aquela que sobrava nos bailinhos da escola, a menos paquerada, desejada e amada, a que mais apanhava dentro de casa, aquela cujos trabalhos domésticos ficavam em sua maioria para mim, aquela em que ser ridicularizada publicamente era algo normal, aquela em que a solidão foi uma imposição e não uma escolha.