Há 30 anos Luiz Eduardo Soares vem propondo debates sobre segurança pública, polícias e justiça criminal. Na próxima segunda-feira (dia 13) haverá mais um, no qual o tema desmilitarização será tratado na Procuradoria Geral da República.
Como não poderia deixar de ser, em tempos bolsonaristas o líder do PSL, Major Olímpio, convocou militares a comparecerem – fardados – ao debate. Objetivo evidente: tumultuar, inibir, baixar o nível.
Luiz Eduardo Soares, antropólogo e filósofo, já foi Secretário Nacional de Segurança Pública e não hesita em afirmar que a transição para a democracia não foi completa no país. As polícias mantiveram-se no tempo da ditadura e são agentes ativos na desigualdade e no racismo estrutural nosso de cada dia.
Autor de vários livros, recentemente lançou “Desmilitarizar” pela Editora Boitempo. Ele conversou com o DCM.
DCM: O Major Olímpio convocou militares a comparecerem ao debate na PGR. Questionado se estaria querendo tumultuar, ele respondeu que não, que deseja “pluralidade e contraponto”. Militares são proibidos de emitir opinião. Se quisesse mesmo uma maior participação dessa categoria, o senador não deveria ser favorável à desmilitarização?
Luiz Eduardo Soares: A pergunta é perfeita é já oferece a resposta. Eu também quero pluralismo e contraponto.
Do jeito que o major colocou, a impressão que se tem é que a desmilitarização tem sido o discurso dominante, onipresente, massacrante, atropelando toda divergência. Uma espécie de reforma da previdência, defendida ostensivamente por toda a mídia conservadora sem espaço para o dissenso.
É até engraçado: numa ocasião absolutamente rara e excepcional em que meu livro e minha posição serão ouvidos, surgem as vozes dissonantes que se sentem preteridas e caladas. Muito bem, que venham os críticos da desmilitarização. Saberei ouvi-los e respeitá-los. E vou lhes repassar a questão: se querem contraponto e múltiplas vozes, por que não libertam as vozes das centenas de milhares de policiais militares, sobretudo as praças, forçados ao silêncio por serem militares?
Por serem forças auxiliares e reserva do Exército (segundo o artigo 144 da CF), durante um governo como o atual que provoca animosidade entre países vizinhos e dissemina medos, não fica mais difícil ainda tratar de desmilitarização?
Sem dúvida. As polícias militares brasileiras são força reserva do Exército, ao qual se vinculam pela Inspetoria Geral e do qual devem copiar a forma de organização. Esse vínculo só não tem gerado crises institucionais gravíssimas porque o Exército não exerceu seu poder sobre as PMs, uma autoridade que compete e se contrapõe à dos governadores. Trata-se de um emaranhado legal labiríntico, repleto de contradições.
Na medida em que o governo federal se militarize, a tendência será que as tensões comecem a surgir, porque as Forças Armadas serão incitadas a ampliar seu campo de intervenção política. O debate sobre a desmilitarização tenderá a ser obstado e definido como discurso do inimigo.
E, como sabemos, ao contrário do que se faz com adversários, inimigos são abatidos.
Uma polícia desmilitarizada que exercesse seu papel essencial de prover segurança ao cidadão e de proteger seus direitos teria um caráter menos belicista. Armar a população não tem por finalidade justificar a manutenção desse aparato violento, preparado para o “confronto”?
Sim, claro. Se o meio de lidar com a insegurança é a expansão do acesso às armas, o resultado será uma sociedade armada, cuja agressividade e cujo medo difusos se converterão em conflitos de consequências letais em cada esquina.
Para lidar com essas tropas civis atomizadas, só uma polícia militarizada e super armada. O que resta de autoridade do Estado, da polícia e da Justiça criminal será substituída pela força, como a única métrica do poder.
Uma polícia não militarizada mataria (e morreria) menos?
É preciso muito cuidado para não idealizar a desmilitarização. Não se trata de uma panaceia. Nossas polícias civis não são militares, por óbvio, mas nem por isso são menos violentas e letais – e dispostas a se organizar em unidades belicosas, como é o caso da CORE, no estado do Rio. As mudanças têm de ir além.
Proponho a PEC-51, ou seja, polícias desmilitarizadas, de ciclo completo e carreira única, menores, transparentes, sob controle da sociedade, que compreendam sua missão como a garantia de direitos, que se definam como prestadoras de serviço para a cidadania e que valorizem seus profissionais.
Por outro lado, as políticas de segurança têm de mirar os mesmos objetivos e as políticas criminais têm de ser revertidas para que se ponha um fim na guerra às drogas, no encarceramento em massa, na criminalização racista da pobreza, que aprofunda as desigualdades, e no genocídio de jovens negros e pobres, nas periferias e favelas.
A operacionalização das PMs, da maneira atual, exige que o soldado que atua na ponta, aquele dá rosto à violência, atue de maneira absolutamente subserviente. Como o senhor explica o paradoxo desse policial que é pobre (muitas vezes negro ou pardo), que tem seus direitos tolhidos, e que pratica esse verdadeiro genocídio contra seus pares de cor e classe social?
Esse é um de nossos maiores enigmas e desafios: a ‘guerra’ é fratricida porque torna os irmãos, inimigos. A maioria dos que se arriscam nos confrontos, de ambos os lados, vêm dos mesmos territórios, passaram pelas mesmas dificuldades, enfrentaram os mesmos sofrimentos. Foram vítimas do racismo, das desigualdades abissais. Testemunharam o tratamento indigno e injusto que o Estado e suas agências conferem aos cidadãos trabalhadores.
Mesmo assim, disciplinados nas polícias, acabam se convertendo em algozes dos parceiros de travessia e em instrumentos de reprodução do domínio de classe. O ódio ativa a energia na corrente das práticas cotidianas, ele se conecta aos eventos mais próximos e aos episódios imediatos. Canalizado por dispositivos institucionais, ele alimenta o ato violento contra o alvo, designado como inimigo. Mas sua fonte é o depósito afetivo das vivências acumuladas, recalcadas e sublimadas, cujos sentidos mais fundos se perderam na história individual, porque memória e conhecimento não coincidem.
Ideologia ressentida e alienação fazem a cabeça de ‘agentes da lei’, propulsionadas por instituições que traíram suas finalidades constitucionais e se degradaram em aparelhos de hegemonia.”
O artigo 144 proíbe que as polícias militares investiguem, mas a pressão de vários segmentos por resultado na segurança pública culmina em que se registrem flagrantes e se lancem as pessoas na cadeia. Isso explica nossa imensa massa carcerária em estágio de bomba relógio?
Exatamente. As polícias que estão nas ruas, 24 horas, em todo o país, são as polícias militares. Elas são proibidas de investigar, mas pressionadas a produzir e entendem, por produção, prisão. Ora, tendo de prender, mas não podendo investigar, só lhes resta prender em flagrante. É o que fazem.
Quais são os crimes passíveis de prisão em flagrante? Alguns. Não os mais importantes – os quais, não por acaso, exigem investigação. Portanto, a aplicação da lei no Brasil é submetida não apenas ao crivo seletivo de classe, cor e território, como à refração imposta pelo flagrante.
Qual o grande instrumento das PMs? A hipócrita, cruel e irracional lei de drogas.
Essa é a rede que as PMs lançam para pescar. O que pescam? Os pequenos varejistas que comercializam substâncias ilícitas. Por isso, a grande maioria é presa em flagrante, sem praticar violência, sem armas e sem ligação orgânica com o crime organizado.
Mesmo assim, são condenados a cinco anos em regime fechado. Uma vez presos, para sobreviver, vinculam-se a facções criminosas que dominam o sistema penitenciário -sim, são elas que dominam o sistema, porque o Estado, criminosa, ostensiva e despudoradamente, descumpre a Lei de Execuções Penais, em todo o país. Quando voltam à liberdade, devem lealdade às fações.
Em outras palavras: estamos contratando violência futura ao preço da destruição da vida de jovens. Eis aí o resultado da combinação entre nosso modelo policial com a lei de drogas.
Medidas como as UPPs (que levam o termo “pacificadora” no nome) terem fracassado não causam uma compreensão equivocada de que “não tem mais jeito”?
Concordo. Como a mídia não oferece à sociedade um repertório mais rico e diversificado de caminhos e soluções, pelo contrário, apenas fornece a ração diária de sangue e pânico, e como os partidos e as entidades progressistas e democráticas não têm sabido ocupar espaços e cumprir essa função conscientizadora, e como nossa cultura tende a confundir vingança com justiça, o resultado é esse: ceticismo e aposta no punitivismo mais demagógico.
Assim, candidatos que prometem mais do mesmo, com mais intensidade, acabam sendo eleitos. Se não há alternativas, só havendo o mesmo, pelo menos que se faça com mais intensidade. E assim chegamos à barbárie, que Bolsonaro, Witzel e Doria estão consolidando e aprofundando.
Existe relação entre o aspecto de a polícia ser militarizada e a existência (em viés de fortalecimento) de milícias?
Não creio que haja uma relação mecânica e necessária, mas as afinidades eletivas são evidentes. Não por acaso, há muitos policiais civis envolvidos, mas a ocupação de um território pela força e a imposição de uma ordem arbitrária exigem poder armado, militarizado, o que torna, de fato, as milícias, braços das PMs, mesmo quando formadas principalmente por civis.
Em menos de um mês, tivemos episódios de policiais militares invadindo sede de sindicato de professores no Amazonas, invadindo reunião de militantes do PSOL e ainda prendendo um torcedor dentro de estádio por ter xingado Bolsonaro. Que análise o senhor faz?
Parece que estão nos testando, tudo indica que estejam avançando no escuro para verificar até onde podem ir, até onde podem seguir, rumo à tirania e à censura, sem encontrar resistência das instituições e da sociedade. Portanto, estamos em luta. Temos de reagir a cada palmo que ousem avançar.
Não podemos recuar, nem deixar as ruas vazias. Cada palavra absurda do presidente, cada insulto, cada gesto mimetizando armas envia mensagens performáticas às bases, espalhadas por todo o país, nos mais diversos fronts, dentro e fora das polícias. Mensagens que autorizam a violência e conclamam à destruição da democracia, em todas as esferas da vida social. A nós, nos resta resistir, sem hesitar.