Vejo no painel de controle do blogue que este texto antigo foi lido hoje por várias pessoas. Presumo que seja por causa do primeiro grande torneio de tênis do ano, o Australian Open, em que Roger Federer vem jogando magistralmente. É um de meus relatos favoritos, escrito quando Federer acabara de vencer enfim Roland Garros. Por sorte, eu estava em Paris naquele domingo e em vez de ir para a Gare du Nord direto pedi ao motorista de táxi que passasse em frente do complexo de quadras de Roland Garros, onde …
E então eu estava em Paris, onde trabalhei na queda do avião da Air France e depois num perfil de uma jovem liderança francesa sobre a qual escreverei em breve.
Era domingo. Chovera no sábado e o dia amanhecera bonito, mas depois o céu se nublou, e uma chuva miúda ameaçou cair.
E era final de Roland Garros.
Roger Federer poderia fazer história ali com sua Wilson, e eu já pedira a conta do hotel. O táxi de Youssef, um Passat novo e limpo como todos os (escassos) táxis parisienses , me aguardava na frente do Pavillion de Paris para me levar à Gare Du Nord, de onde partem os trens da Eurostar rumo à estação St Pancras, em Londres.
Pedro, meu filho, estudante de jornalismo, está comigo. Me ajuda no trabalho. Na pesquisa, nos links e vídeos do blog, e depois faz uma última leitura dos meus textos. Checa datas, grafias. Vibrou como um menino quando varamos a madrugada de quarta-feira no saguão do hotel, eu escrevendo sobre a missa de Notre-Dame em memória dos mortos do vôo 447, ele numa retaguarda infatigável.
Jornalismo, quando você é jovem, só é jornalismo mesmo se você atravessar madrugadas.
E então peço a Youssef que passe por Roland Garros, just to take a look, sil vou plait,apenas para dar uma olhada, por favor, e eis que cambistas se aproximam. São muitos os cambistas, e alguns seguram pequenos cartazes em que anunciam seus produtos.
E a história do tênis vai ser escrita logo mais, e é muita sorte você estar no lugar certo na hora certa, e a Gare Du Nord pode ficar para depois, a final em que Federer pode se consagrar o maior jogador de todos os tempos não.
Os planos são mudados.
Tenho que ver o jogo. Vai significar trabalho, pois escreverei sobre o que vi no domingo 7 de junho histórico em Roland Garros, mas não faz mal.
Entabulo uma negociação rápida com um dos cambistas que me assediam, pego nas mãos dois bilhetes e pergunto para ele como posso ter certeza de que são verdadeiros. “Isso aqui é trabalho, meu amigo”, responde ele com um maço de euros que tira do bolso e quase me esfrega no rosto.
E então estamos, Pedro e eu, dentro das instalações de Roland Garros. São 2 e meia da tarde, e faltam 30 minutos para o jogo. Uma placa bem humorada indica três destinos, direção e distância: Wimbledon, Flushing Meadows e Melbourn Park.
Lol.
Vejo um rosto conhecido a poucos metros de mim, perto da Philippe Chatrier, a quadra central, e penso que é de algum comentarista de tênis que vi na TV. Depois vejo o juiz subir a meia dúzia de degraus rumo a seu assento de vista privilegiada da quadra de terra, e percebo que quem eu tinha visto era Pascal María, renomado umpire francês.
As pessoas vão se acomodando aos poucos. Não há pressa. As cadeiras são numeradas, a organização é impecável. O banheiro é tão cuidado como o do hotel que eu deixei pouco antes. Muita gente na loja que vende produtos variados de Roland Garros, muita gente comendo baguetes ruins num barzinho, muita gente circulando pelas alamedas em torno das quadras. Muita gente fotografando, incluídos Pedro e eu. No Flickr estão nossas fotos, tiradas de uma máquina barata comprada às pressas na Fnac da Champs-Élysées na tarde de quarta para registrarmos imagens da missa de Notre-Dama. As nossas são imagens de fotógrafos entusiasmadamente amadores, caso alguém se arrisque a vê-las.
E então chega a hora, e as cadeiras estão ocupadas, e o telão mostra os jogadores à beira da entrada. Muitos espanhóis na torcida. Tinham comprado ingressos fazia tempo, certos que Nadal levaria mais uma. Na minha frente uma espanhola ergue uma bandeira quando pressente que as câmaras passearão pela torcida. Não consigo ver o que está escrito, e sou curioso como todo repórter, e então cutuco a espanhola e pergunto o que ela escreveu. “Rafa: estamos com você pela quinta vez”.
Lol.
O jogo começa, e alguém logo berra: “Vamos, Rafa!” Todos riem. É bom não ver o tio de Rafa, penso.
Federer está firme. Primeiro set liquidado rápido. Pedro fica impressionado com o slice de esquerda. Ao vivo é ainda mais bonito. O movimento parece o de um maestro caprichoso, e a bola passa sempre assustadoramente rente. Soderling não veio para o jogo, ele que bateu Nadal na maior zebra da história dos Slams, os torneios mais glamurosos. “O Cabeça daria mais trabalho para o Federer”, comento com Pedro. Cabeça é nosso amigo e nosso professor de tênis, um gênio incompreendido da Academia do China.
E eis que, do nada, irrompe na quadra a figura bizarra de um torcedor de Nadal. Federer dá um pulo para trás, assustado, quando ele se aproxima e tenta colocar-lhe um gorro. O loco dá uma corrida desajeitada rumo à rede. Fracassa no pulo, e cai, e corre inutilmente dos seguranças. Me ocorre o caso dramático de Monica Selles, esfaqueada nas costas por um admirador da rival Steffi Graff quando estava sentada em sua cadeira num intervalo. Selles inovou no tênis ao trazer os gritos nos golpes, hoje comuns em homens e mulheres. Nunca mais foi a mesma depois da facada.
Federer pode se desconcentrar? A resposta vem no tiebreak do segundo set, quando ele acerta uma seqüência de quatro aces.
Falta apenas um set para Federer ganhar enfim Roland Garros, e a chuva miúda mas contínua parece que vai interromper o jogo. É bonito ver, de cima, a aglomeração multicolorida de guarda-chuvas na Philippe Chatrier quando chove. Talvez por isso não coloquem um teto retrátil, como o que a quadra central de Wimbledon recentemente ganhou.
Federer faz uma partida soberba. Saque, devolução, curtinhas, direitas e até as esquerdas que às vezes vão parar nas arquibancadas, está tudo funcionando muito bem. Torcedores suecos de Soderling, atrás de mim, não perdem a esperança. “As coisas estão melhorando. Faltam só onze pontos para o Robin ganhar o set”, ouço um deles comentar. Aqui e ali berros de estímulo a, lol, Rafa.
Federer saca para o campeonato e para a história. Fotografo ponto a ponto o telão, e Pedro me dá uma bronca. “Olha o jogo, pai!” Olho. Match point. Ponto, set, match. Eternidade. A torcida de pé, Roger, Roger. Até os torcedores de Robin Soderling vibram com Federer, que já não é apenas suíço mas um cidadão do mundo. Federer chora discretamente quanto toca o hino da Suíça, mas são lágrimas bem diferentes das vertidas na Austrália depois de perder para Nadal.
Agassi entrega os troféus, e a chuva vai ficando forte. Soderling parece tão feliz quanto Federer, e faz um discurso bom mas mais longo do que deveria por causa da chuva. Federer alterna francês com inglês, e parece Bonaparte quando ergue o troféu com o qual tanto sonhou.
Tempo de ir embora, agora sim rumo à Gare Du Nord e Londres, de onde escrevo neste começo de madrugada fria. Onze graus.
Um dia longo, cansativo, iniciado em Paris cedo e terminado em Londres bem tarde. São quase quatro da manhã.
Mas.
Mas que dia.
Digo a Pedro que ele vai falar a seus filhos, no futuro, que viu Federer ganhar enfim Roland Garros, ele e seu pai, e tomaram chuva, e se molharam, e festejaram, e tiraram fotos, e fizeram aquelas pequenas coisas que dão sentido à vida.