Por Renan Antunes de Oliveira, em Palhoça, Santa Catarina
Os pais do indiozinho kaingang degolado por um branco na rodoviária de Imbituba, na antevéspera do ano novo, não eram mendigos. Estavam naquela praia vendendo artesanato para melhorar em 2016: “A gente precisava uma geladeira nova e material escolar para a filha mais velha”, conta dona Sônia, a mãe de Vitor, o menino martirizado.
Até o crime os Pintos formavam uma família unida e guerreira. O pai, Arcelino, 42, Sônia quase 30, a filha Elionai, 16, e o menino Jessé (6) estavam em Imbituba para começar o verão de vendas quando foram atingidas pela tragédia. Os adultos não falam em planos para o futuro, estão esperando a dor baixar.
O pai quase não falou durante a entrevista na manhã desta quinta (7) no restaurante Engenho da Boca da Serra, na BR282, perto de Florianópolis. Ele diz que gostaria de estar presente à cena do crime para fazer com o assassino o mesmo que este fez com a criança.
A polícia identificou o criminoso como Matheus de Ávila Silveira, 23, drogado e alcóolatra, morador de rua e com problemas mentais. A polícia ainda não tem nenhuma teoria coerente para explicar tamanha insanidade. A Justiça botou Matheus em prisão preventiva enquanto durar o inquérito, até seu provável indiciamento e julgamento – salvo uma reviravolta improvável.
Entre as polêmicas sobre motivos e autoria, aqui vai a correção de um fato pequeno mas dado como verdadeiro: a criança não estava mamando no peito quando foi atacada, como disseram os jornais.
Sônia: “Ele tinha 2 anos e meio (nasceu em 7 de julho de 2013) e não mamava mais. Eu servi um prato de arroz e carne e ele estava comendo com a mão quando o homem chegou”.
O suspeito veio sorrindo, mas com um estilete mortal escondido por luvas azuis e brancas.
A cena de terror durou segundos. O branco amigável deu um único corte da direita para a esquerda no pescoço do menino.
A mãe descreve os segundos terríveis depois do corte: “Vitor chorou só por alguns segundos”. Ela não sabe dizer quantos, mas pode ter sido só o mesmo tempo que ela leva para esconder os olhos com as mãos.
Neste ponto da entrevista Sônia trava e não consegue descrever o breve sofrimento do filhinho.
Quando se recupera ela toma coragem e conta a agonia da morte quase instantânea do filho. E fala da imortal esperança de mãe: “Mesmo com ele sangrando eu pensei que conseguiria sobreviver”. Aí é demais e ela cai no choro.
Ela já recontou o drama várias vezes nos últimos sete dias. Para familiares, policiais, jornalistas e curiosos. Só tem uma certeza: “Foi Matheus. Eu o reconheci pelas fotos e pelas roupas, mochila e as luvas que a polícia me mostrou”. Só ficou faltando achar o estilete.
Peritos agora estão tentando encontrar o DNA de Vitor em alguns dos objetos para estabelecer uma relação definitiva com o suspeito. Apesar da certeza da mãe e da polícia, Matheus continua negando a autoria do crime. O resultado pode demorar meses, dadas as notórias dificuldades operacionais do Instituto Geral de Perícias do Estado.
A família Pinto – sim, era uma família grande, unida, guerreira e, até o episódio, aparentava ser feliz – escolheu a rodoviária de Imbituba para vender por acaso: “A gente ia para Garopaba, mas havia poucos turistas e estava chovendo.”
A longa jornada dos Pintos começou na aldeia Condá, em Chapecó, a 600 km de Imbituba, dois dias antes do crime, num ônibus fretado por índios que fazem vendas de verão. “Pagamos 90 por pessoa, mais barato do que os ônibus de linha (a 177 reais)”, diz o pai. No bagageiro, as bugigangas vão sem as reclamações que os índios enfrentam quando pegam ônibus regulares.
Arcelino é o chefe da família. Sônia estava sozinha na rodoviária porque ele, Jessé e Elionai saíram cedo para vender noutra praia carregando sua carga – cestos grandes, vendidos a 60, flechas, brincos, colares e pequenas esculturas com preço a pechinchar.
Negociar nas calçadas é da tradição cultural dos kaingang. Eles trabalham o ano inteiro e faturam no verão.
Sônia conta que começou a vender quando era pequena, acompanhando sua mãe. Nunca fez outra coisa na vida. Ela já tinha até vendido em Imbituba, “sem ter tido problemas com os brancos”, embora “eles não gostem que a gente venda nos lugares deles”.
Apesar de a mulher estar vendendo sozinha na hora do crime, não é como pode parecer – que o marido a deixou na calçada com um bebê para trás. “Vitor era muito pesado para carregar”, conta o pai, com uma ponta de ternura.
Sônia entra quase com alegria na conversa, como se ele ainda estivesse vivo. “Eu fiquei na rodoviária porque ele pesava 13 quilos. A gente pesou ele com o médico cubano do posto de saúde da aldeia uma semana antes da viagem. Vitor estava muito bem, só não dava pra carregar”, então ela dá uma pequena risada.
A tia de Vitor, cacique Márcia Rodrigues, entra na conversa: “Ele era precioso. Não falava direito, mas vinha na minha casa depois do almoço para pedir ‘bala’, na verdade chocolate”.
Márcia acompanha a familia Pinto na viagem. Ela conta que na aldeia todos vivem em casas próximas, tios, avós, os 14 irmãos de Arcelino e cada um com sua criançada: “O Vitor era um menino saudável, alegre e feliz na aldeia, todos cuidavam dele.” A cacique também chora.
A caravana que saiu de Chapecó esperava se beneficiar da maré de argentinos com dólares que invadiu Santa Catarina.
Os Pintos queriam faturar R$ 2500 na temporada para investir na geladeira e no material de Elionai – isto porque a menina vai sair da escola da aldeia e se misturar com crianças brancas na cidade, pela primeira vez. “Queríamos dar o melhor pra ela”, diz a mãe, num eco do que milhões de mães brasileiras dizem toda vez que começa uma temporada de aulas.
A cacique assume um pouco para falar em nome do casal. Queixa-se da polícia, da divergência entre policiais, de uma tese furada de que Matheus teve um braço quebrado por dois indígenas meses atrás. Ela acha que foi coisa de branco neonazi que odeia índios. O pai permanece calado, com aquele olhar parado dentro do qual o tsunami de fúria está represado.
Contido, ele diz que “eu só queria estar lá na hora para pegar o cara que fez isto e fazer a mesma coisa com ele”.
Arcelino, Elionai e o pequeno Jesse ficaram sabendo do crime pela televisão.
Foi assim: os três estavam com sua habitual carga de bugigangas, caminhando, quando entraram num bar para tomar um refrigerante. Aí o balconista disse: “Mataram um índio na rodoviáriam.”
“Na hora pensei na Sônia e no nenê”, diz Arcelino, sempre cerrando os dentes enquanto fala.
Elionai entendeu, mas o pequeno não. Os três pegaram um ônibus e foram para a rodoviária procurar os outros dois da família.
Arecelino: “Quando cheguei só vi as coisas deles espalhadas no chão”.
Foi o suficiente para entender a tragédia que tinha atingido os seus, mas ele não sabia quem estava morto, se um ou os dois.
Caminhando, os três foram da rodoviária para a delegacia, ali perto.
Eram cinco horas da tarde, cinco depois da morte.
Na calçada perto da delegacia Arcelino viu sua mulher vagando de um lado para outro, esperando por ele.
“Quando a vi já entendi tudo, mas não queria acreditar.” Arcelino fala como quem pede socorro, a fúria está se esvaindo, dando lugar à dor.
Ele conta que os três correram para a mãe e se abraçaram, todos chorando.
Só então fez pergunta que não queria calar: “Cadê nosso nenê?”
Sônia diz: “Um branco matou nosso filho”. E os índios ficaram ali, sob chuvisco, agarrados às bugigangas que lhes trariam felicidade e um ao outro, chorando a morte do pequeno.
Enquanto isto, na delegacia, os burocratas avisaram o pessoal da Funai do crime.
As providências federais foram tomadas em seguida: um motorista foi despachado de Chapecó às 21 horas de 30 janeiro para buscar a família na rodoviária. Ele só chegaria às 8 horas da manhã seguinte, 31.
Os Pintos voltaram à rodoviária, reuniram seus pertences e graças à gentileza de um vigia ganharam um cantinho pra esperar o motorista, longe da curiosidade pública crescente.
Neste tempo de espera, 17 horas, nenhum repórter, nenhuma câmera de TV, nenhum funcionário da Funai. Só os quatro e sua dor, deitados no chão do terminal onde morreu um dos seus.
Arcelino, Sonia e a cacique Márcia contam tudo isto com resignação, durante a entrevista no restaurante Engenho Boca da Serra.
Os três procuram uma justificativa racial para o incidente. A cacique é a mais insistente: os brancos não gostam deles.
A conversa se dá num canto discreto no fundo do restaurante, mas alguns fregueses e funcionários reconhecem Sônia da TV.
Quando os índios se dirigem ao caixa para pagar pelo consumo, quem está lá é a dona do lugar, dona Vera Brock. Sem que ninguém tenha pedido, ela não cobra a turma. “Também sou mãe. É o pouco que posso fazer em solidariedade pelo que fizeram com o filho dela.”
Os Pinto entram no Fiesta da Funai e iniciam a longa marcha de volta à aldeia para enfrentar a dor da tragédia da rodoviária de Imbituba.