Céu nublado, verão já com tempo ameno, em transição para o outono. Esse foi o tempo que fazia quando François Hollande, presidente da França entre 2012 e 2017, me recebeu em seu gabinete em Paris. Ele aceitou falar “por Lula”, como fez questão de enfatizar.
Seu governo reduziu o desemprego abaixo de 10%, realizou o Acordo de Paris sobre o clima (COP21), mas se tornou impopular após medidas consideradas conservadoras, como a flexibilização da lei trabalhista e um ministro da Economia da ala direita do Partido Socialista, Manuel Valls. Não se candidatou à reeleição em 2017, contudo seu local de trabalho parece reproduzir numa pequena escala o Palácio do Eliseu, sede do governo francês.
A imprensa já não especula sobre outra coisa: ele prepara sua volta. Recentemente, lançou o livro “Les Leçons du Pouvoir” (“Lições do Poder”, na tradução literal), considerado um sucesso de vendas. Pelo país, tem viajado, criticando o atual presidente, Emmanuel Macron, seu ex-conselheiro e ministro da economia que saiu do governo e fez uma candidatura surpresa à presidência.
Fora do poder, diz estar mais livre para dizer o que pensa. Ele acredita que os líderes europeus que conheceram Lula devem se expressar mais. “É preciso jamais esquecer o passado, da ditadura”, afirma.
Antes criticado por falar demais, agora é mais conciso, fala pelas entrelinhas ou se cala sobre determinados temas, como se o título de seu livro fosse uma aplicação para 2022, ano das próximas eleições presidenciais. No seu diagnóstico, em um mundo em que a democracia está ameaçada, a proteção virá da esquerda, porém ela precisa renascer.
Nesta entrevista ao DCM, ele propõe um caminho.
DCM: Como encarou a decisão da Justiça de impugnar a candidatura de Lula?
Hollande: A decisão do Tribunal Superior Eleitoral produz mais uma vez uma situação no Brasil que pode ser perigosa, pois Lula não pode ser considerado candidato, a não ser que haja uma decisão da Corte Suprema que a reverta.
Eu considerei que era muito importante, respeitando as instâncias que têm por vocação o direito no Brasil, dizer que eu considero que há um risco se Lula for retirado do processo eleitoral, de ir para uma direção que no Brasil, grande país democrático, é preciso jamais esquecer seu passado, da ditadura. A população nesse grande país democrático corre o risco de não poder escolher o presidente que lhe parece apropriado para solucionar os problemas do Brasil.
A ex-presidente Dilma Rousseff foi muito criticada, acusada de conduzir uma política de direita durante seu segundo mandato e sua popularidade despencou. A mesma crítica foi feita ao senhor. O que pensa a respeito?
Eu penso que a esquerda, quando afronta realidades, não pode fugir. Seu dever é tomar decisões corajosas para pôr a economia em ordem, gerar empregos e garantir a solidariedade. Foi o que eu fiz pela França, que retomou o crescimento, o emprego, o investimento, o poder de compra. E se Dilma pudesse ter continuado, imagino que ela teria obtido resultados diferentes dos atuais.
O Tribunal Superior Eleitoral, com o ministro Barroso à frente, foram contra a recomendação do Comitê de Direitos Humanos da ONU, a qual demanda que Lula possa disputar as eleições. Qual o impacto para a imagem do Brasil?
Sem entrar no debate jurídico, há um assunto político quando um candidato é muito popular para parte dos brasileiros, mesmo que seja uma parte. A lógica é que ele possa disputar as eleições sem que os processos judiciais sejam interrompidos. Por isso houve uma mobilização internacional de chefes de estado ou ex-chefes de estado, incluindo eu, para que autoridades que decidiriam sobre a candidatura de Lula permitissem que ele se candidate.
Lula é processado, assim como Fernando Haddad, seu candidato à vice-presidência. Como o senhor enxerga esses processos?
Eu não tenho o que dizer. Não tenho informações e respeito da justiça brasileira, como imagino que os brasileiros não devem ter sobre a justiça francesa.
A grande mídia brasileira é sempre mais agressiva com a esquerda. Na França é diferente?
Não. Não devemos reclamar disso. Sempre há uma exigência particular com a esquerda por parte da imprensa independente. Além disso, há uma imprensa opinativa geralmente à direita que questiona incessantemente a legitimidade da esquerda. Isso vale para todos os países. A imprensa independente deve tomar cuidado para não exigir mais da esquerda sob o risco de colocá-la em grande dificuldade.
Os cidadãos devem estar conscientes de que a democracia supõe que a esquerda seja respeitada e que o voto seja igualmente respeitado. Há esse processo de ilegitimidade da esquerda por todas as partes, porque ela confronta interesses, porque ela questiona os poderosos, porque ela faz a redistribuição (de renda) que incomoda diversos setores.
Por que a esquerda não conseguiu ir para o segundo turno das eleições presidenciais francesas em 2017?
Simplesmente porque ela estava dividida. E quando há vários candidatos, quando há um risco de direita ou de extrema direita, há um voto útil que pode ocorrer em detrimento da esquerda.
A democracia brasileira corre risco com Lula preso?
Sim, há um risco. Vemos muito bem que quando o candidato não é aquele que se deseja, o eleitorado se dispersa e quem vai para o segundo turno é a direita e a extrema direita.
Como o senhor explica a ascensão da extrema direita no mundo, com Bolsonaro no Brasil, Trump nos Estados Unidos e outros líderes extremistas em diversos países europeus?
Há diversas explicações. A primeira, é que há um medo diante da globalização, as teses nacionalistas, protecionistas podem encontrar aí um terreno fértil. Há uma segunda explicação, que é o medo da imigração que encontra-se na Europa por causa do drama dos refugiados, ou da migração nos Estados Unidos.
Enfim, porque há uma crise profunda da democracia, que remete às instituições, profundamente desmoralizadas; às políticas que são incessantemente questionadas e a personagens como Trump, como outros, (que) podem se valer disso. O risco é a democracia poder sair deteriorada ou golpeada.
Eu, pessoalmente, considero Trump o chefe dos populistas na escala mundial e ele imprime suas escolhas além dos Estados Unidos. Vemos isso na questão do clima, do protecionismo, do questionamento dos acordos comerciais e que, diante dessa ameaça, o populismo em escala mundial, os democratas devem se unir.
Há um fracasso da democracia no mundo?
Eu não diria que seja essa a palavra… Há uma dificuldade para a esquerda progressista, para a social democracia, porque é mais difícil para ela transmitir seu discurso racional, de equilíbrio, de harmonia, de respeito e de tolerância diante das teses extremas. Há um risco porque o populismo atinge as instituições, a mídia, a justiça, mas igualmente a representação política. Todas essas questões justificam que a esquerda possa se restabelecer, porque é dela que virá a proteção da democracia.
E qual é o papel do socialismo no mundo?
Responder aos desafios de hoje e de amanhã, não apenas reivindicar o que ele fez no passado. Um primeiro desafio, a questão da desigualdade, a social democracia, é o socialismo que pode encontrar mecanismos de redistribuição de renda. Nós provamos ser possível produzir e manter a economia. O segundo desafio é o aquecimento global, a crise que o planeta enfrenta hoje. Ainda são os social-democratas, eu, por exemplo… é a iniciativa da França que obteve o acordo sobre o clima, o que pode trazer respostas. Enfim, sobre todas as questões das novas tecnologias temos a vontade de inserir o homem. E sobre essa causa humana, os social-democratas podem renascer.
Seu governo foi socialista?
Sim, eu fiz um governo socialista, a maioria dos membros era socialista; nem todos, havia ecologistas, pessoas sem filiação política, mas um governo socialista, isso foi bastante dito.
Por que não se vê solidariedade a Lula por parte de Nicolas Sarkozy (ex-presidente francês de 2007 a 2012), que era bastante próximo a ele e agora não diz nada?
(Silêncio por alguns segundos) Isso precisa ser perguntado para ele, não para mim. Eu penso que Lula teve vontade, quando foi presidente, de ter uma boa relação com a França e evidentemente com o presidente naquele momento, o qual era Nicolas Sarkozy. Eu não posso dizer mais do que isso.
Há solidariedade suficiente em relação a Lula por parte da classe política europeia?
Eu acredito que os que o conheceram como presidente deveriam se expressar mais. Eu conheci o Lula quando ele não era presidente. Quando ele foi presidente, eu já o conhecia.
Trata-se de um homem que fez seu país avançar, que teve boas relações com a União Europeia e com os países emergentes. Ele era profundamente respeitado e ouvido.
Como o senhor analisa o incêndio do Museu Nacional no Rio? Seria possível um fato semelhante na França?
Isso é um drama terrível. Um museu que pega fogo, com obras, arquivos, documentos; é para todo o planeta uma forma de amputação, da nossa história, da nossa memória, de modo que é preciso tentar salvar tudo que é possível, de restaurar as obras possíveis, ainda que eu acredite que a maioria do patrimônio foi atingida. E poder enviar ao Brasil os documentos que poderiam substituir os que pegaram fogo.
Depois do golpe de estado, o novo governo, de Michel Temer, autorizou a exploração do petróleo brasileiro por empresas estrangeiras. O senhor acredita em ingerência externa?
A soberania do Brasil é saber o que pode fazer quanto à exploração petrolífera. O que é preciso fazer é ter garantias sobre o meio ambiente e o retorno dos benefícios, o que imagino ser o caso.
Os processos contra Lula são descritos por diversos intelectuais como a segunda etapa do golpe de estado de 2016, o impeachment de Dilma Rousseff. O senhor esteve no Brasil durante esse processo, mas não disse uma palavra a respeito. Por quê?
Eu estive no Brasil durante a Copa…
Durante o impeachment…
Sim… durante os Jogos Olímpicos.
O processo de impeachment estava em curso.
Sim. Eu fui para os Jogos Olímpicos e acredito não ter encontrado a Dilma naquele momento. Eu acho que não…
Ela estava prestes a ser julgada.
Você tem a resposta. Eu fui para os Jogos Olímpicos, não tinha que interferir num processo parlamentar. Foi por razões jurídicas ou políticas que houve o impeachment? A resposta é: foi por razões políticas.
E por que seu partido não tomou uma posição oficial?
Eu não era chefe do Partido Socialista naquela época. Tem que perguntar ao Partido Socialista, mas eu acredito que ele teve, como diversas autoridades, que expressar reservas. Eu penso que nós, como chefes de Estado, tínhamos um distanciamento com muita reserva pelo que o processo poderia provocar. Mas eu penso que não cabe às autoridades de Estado interferir. Os partidos políticos podem fazê-lo e o fizeram. O Partido Socialista lamentou profundamente esse processo.
Como vê a gestão Temer?
Precisamos nos ater sobre Lula. Que façamos comparações com a esquerda francesa, podemos fazê-lo, mas isso eu não vou comentar.
O que é o Brasil na cena internacional?
O Brasil é, primeiramente, um lugar eminente na América Latina. Há muito a fazer com relação à situação trágica na Venezuela, o que pode provocar dramas humanitários consideráveis; então o primeiro dever do Brasil, como de outros países do continente, é encontrar uma solução para a Venezuela, e não aceitar o que está acontecendo. Há um drama na Venezuela, uma tragédia para a população, mas uma ameaça para o equilíbrio do continente.
Um segundo ponto: o Brasil é uma potência. Ele faz parte do G20, dos países chamados de emergentes e tem uma capacidade muito grande de desenvolvimento e crescimento. E, enfim, o Brasil tem também uma mensagem sobre a questão climática, pois ele tem uma responsabilidade particular com a floresta amazônica. Enfim, o Brasil, país que fala o português, que tem vocação mundial, língua que é muito ligada ao francês também. O Brasil pode exercer um papel também sobre o plano cultural. Por todas essas questões, é imperativo que o futuro do Brasil seja o melhor possível para o mundo.
Por que o senhor não se candidatou à reeleição em 2017?
Eu considerei que em 2017 não havia condições políticas para a minha candidatura. Havia um risco que se eu fosse candidato, o que era possível, que a direita e a extrema direita pudessem ir para o segundo turno das eleições e que a extrema direita pudesse ganhá-las ou que a direita dura saísse vencedora. Eu não poderia fazer meu próprio país correr nenhum risco.
Por que Benoît Hamon, um ministro que era contra sua política econômica, foi então escolhido para representar seu partido?
Foram as primárias que deram esse resultado. Eu acredito que não deveria haver as primárias. Mas as primárias aconteceram e ele foi o escolhido, sob uma linha política que não é a minha, que deu um resultado de aproximadamente 6%.
E por que ele obteve apenas 6% dos votos?
Porque ele não correspondia àquilo que a maioria dos eleitores socialistas ou de esquerda desejavam para o país, o que não quer dizer que ele não tinha ideias interessantes. Mas isso quer dizer que ele não era visto como um candidato com credibilidade para a eleição presidencial.
A ex-presidente Dilma Rousseff será candidata a senadora. E o senhor? Quais são seus planos políticos?
(risos) Eu não sou candidato ao Senado — francês, pelo menos (risos). Eu não estou numa perspectiva eleitoral hoje. Então, me expresso mais livremente. Tenho mensagens a passar. Eu não busco nada para mim mesmo. Mas eu desejo bom trabalho a Dilma Rousseff em sua campanha.