O DCM obteve acesso a mensagens inéditas da Spoofing, operação da Polícia Federal que investigou e prendeu suspeitos de invadirem as contas de Telegram dos procuradores da Lava Jato. Mais reportagens baseadas nesses arquivos serão publicadas nos próximos dias. Você pode ler a série nesses links: 1 e 2.
’10 medidas’, auge da Lava Jato e um anteprojeto ilegal
Os procuradores da Lava Jato apresentaram, a partir de 20 de março de 2015, segundo ano e auge da operação, as ’10 medidas contra a corrupção’. O projeto coletou mais de um milhão de assinaturas em uma campanha nacional e divulgou os integrantes do Ministério Público que atropelaram a Constituição.
Um diálogo no Telegram de 24 de abril daquele ano mostra que procuradores já queriam atropelar as bases da democracia brasileira. Deltan Dallagnol, de Curitiba, Helio Telho, de Goiás, e Vladimir Aras, de Brasília (primo de Augusto Aras) falam de um anteprojeto controverso para ser inserido nas ’10 medidas’.
Às 12h42, Telho anexa um arquivo e escreve o seguinte:
“Criei esse grupo para facilitar a discussão sobre a redação da proposta do anteprojeto de lei sobre provas ilícitas. Fiz uns ajustes no texto. Vou postar aqui para vocês avaliarem a viabilidade de prosseguirmos”.
Deltan Dallagnol responde às 18h08:
“Grande Helio, segue com algumas sugestões”. O procurador da Força-Tarefa manda outro anexo.
E sugere:
“Gostaria de estar (sic) [com] essa questão na pauta. Desmembrá-la é perfeito. Se o ônus de encaminhar junto com as 10 medidas for grande, pode ser encaminhado em paralelo”.
Helio Telho fala às 19h05:
“Não vi diferença entre o que eu postei e o que eu postei e o que você mandou. Será que você mandou o certo?”.
E prossegue, às 19h16:
“Deltan, foi erro meu. Agora sim, eu abri o arquivo certo. Gostei das suas sugestões. Quanto à sua dúvida em relação ao inciso XI, trata-se de garantir licitude de prova obtida por réu colaborador ou por whistleblower (como por exemplo as provas oriundas do SwissLeak (sic) – o vasamento (sic) ocorrido no HSBC Suíço). Quanto ao inciso XII (gravidade da violação x gravidade do crime), talvez seja estrategicamente mais adequado excluí-lo simplesmente. Talvez os outros casos já cumpram, satisfatoriamente, todas as hipóteses. Além do mais, facilitaria a aceitação de quem hoje está contra”.
Deltan Dallagnol responde às 19h50:
“Mas nesse caso caso do whistleblower é revelação de crime, não?? Acho que esse é o ponto, smj… e me parece que o whistleblower não entra na descrição, porque não necessariamente é admitido em programa de colaboração e recompensa… digo só pra pensar. Quanto ao inciso XII, acho que, se excluir, a resistência englobará outros também… e o XII é uma válcula de escape de ponderação… não sei, mas eu deixaria… Daria para incluir mais um: ‘XIII – quando a prova foi produzida de acordo com a orientação de jurisprudência significativa existente ao tempo de sua produção”.
Às 22h30, aparece um terceiro procurador nos diálogos: Vladimir Aras. E ele diz:
“Qual a versão atual, HT [Helio Telho]? Aquela na qual trabalhei com vc [você]? Preciso mostrar a Janot, para tentar convencer a PGR a retomar”.
Às 22h59, Helio Telho responde:
“Vou postar aqui amanhã”.
A conversa entre os três se estende pelos dias 25 e 26 de abril, é retomada nos dias 3, 4 e 6 de maio, abordando detalhes de um anteprojeto de lei para legalizar provas ilícitas – que seria mostrado ao PGR da época, Rodrigo Janot. Nos dias 10 e 14 de maio, a versão final do texto é abordada.
Gustavo Badaró, doutor em Direito Processual pela USP, criticou a tentativa de legalização de provas ilícitas em dezembro de 2015 em um artigo no Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, o IBCCRIM. Especialistas consultados pelo DCM comentaram o teor desses diálogos.
Roberto Tardelli é advogado e ex-procurador de Justiça de São Paulo. Tornou-se conhecido no Ministério Público ao cuidar da acusação de Suzane Von Richtofen e dos irmãos Cravinhos.
“Qualquer categoria profissional pode se mobilizar por melhores condições de trabalho. Pode querer melhorar a qualidade de vida daqueles que exercem essa profissão de procurador. É absolutamente dentro da regra do jogo que procuradores, promotores e juízes se mobilizem para garantir vitalicidade, aumentar salário, criar melhor infraestrutura. Isso está na regra do jogo democrático”, diz.
“O que não está na regra do jogo democrático é essa categoria profissional se organizar para criar uma brecha que contraria a essência dela. Digo o seguinte: O MP tem assento constitucional. Na Constituição, o Ministério Público tem o dever de manter a ordem jurídica. Essa ordem jurídica é composta, entre outras coisas, de um conjunto de direitos fundamentais que estão no artigo quinto. Eles são as nossas joias, os nosso diamantes jurídicos”.
Para Tardelli, “eles não podem organizar um projeto de lei que atente um dos princípios mais caros à Constituição que é a inadmissibilidade das provas ilícitas. Isso não diz respeito somente à interceptação telefônica, diz respeito à tortura, integridade física da pessoa que fica absolutamente comprometida, desprotegida, porque não existiria mais nenhum tipo de proibição de informação falsa ou verdadeira desse tipo de colheita de prova”.
O ex-procurador prossegue: “Os procuradores simplesmente não podem fazer isso. Quando eles demonstram que querem fazer isso, eles traem o compromisso mais evidente e basilar do Ministério Público. Se a gente for acusado de toda a forma, não vamos nos livrar de acusação alguma. O atributo de processar alguém, que só o MP tem, está sujeito a uma série de regramentos. Eles vivem um delírio. Esse delírio de megalomania, de superioridade moral, jamais ventilou que eles pudessem ser alvos dessa caça. Na verdade isso era para tirar a mordaça da alcateia de lobos. Era para que a gente vivesse num Estado de terror. Profundo Estado de terror. Que eles liderariam.”
Segundo Tardelli, “se as provas ilícitas fossem legalizadas, Dallagnol e companhia estariam, pelo menos, utilizando uma tornozeleira eletrônica. Eles queriam a criação de uma ordem autoritária que acabaria punindo eles mesmos. Há evidente conflito de interesses nessa ideia.”
O jurista Lenio Streck, advogado e professor da Unisinos, acrescenta que “procuradores não são deputados, mas poderiam oferecer sugestões e anteprojetos desde que não sejam inconstitucionais e imorais. O que eles fizeram é moralmente inadmissível, antirrepublicano e deslustra a história do MP. Que feio!”
“Ainda bem que o projeto foi ‘chumbado’ no parlamento. Seria uma vergonha para o mundo admitir prova ilícita em processo. O Ministério Público é o guardião dos direitos e não pode ser o algoz. Quem propôs essa monstruosidade deveria fazer uma autocrítica porque é uma violação ética forte”.
E finaliza:
“Propor inconstitucionalidade é violar a própria República. É como o Papa propor a revogação da Bíblia”.
Precedente perigoso
De acordo com uma reportagem publicada em setembro de 2019 de Leandro Demori, do The Intercept Brasil, e de Reinaldo Azevedo, da BandNews, o advogado Modesto Carvalhosa entrou com dois pedidos de impeachment contra o ministro Gilmar Mendes: um em abril de 2018 e outro em março de 2019.
O texto dos pedidos de impedimento contra Gilmar foi escrito pela procuradora Thaméa Danelon e revisado por Deltan Dallagnol. A atitude dos dois procuradores, em conluio com um advogado, foi retratada na época como “imoral” e também “ilegal”.
Aquele foi um dos exemplos de como figuras impulsionadas pela Lava Jato estavam tentando influenciar o debate público para suas pautas, afrontando os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e a própria Constituição.