Por Igor Carvalho
Quando completou 38 anos, o designer Alê Aguasanitaria entendeu que era gay. Procurando referências estéticas na internet, ele se deparou com imagens de homens sem camisa e se sentiu provocado.
“Eu fiquei muito puto e denunciei as fotos. Toda foto de homem que aparecia, eu denunciava para o Pinterest. Eu olhava aquelas fotos e foi mexendo comigo. Aí, eu comecei a pesquisar ‘mulheres gostosas’ e fiquei olhando as fotos. Até que: ‘Puta que pariu, sou gay’.”
A sensação tardia tem uma longa explicação. “Eu não tive uma infância normal, passei minha vida na escola sofrendo bullying, me chamavam de ‘viadinho’, ‘bichinha’ e ‘boiola’. Mas o bullying que eu sofria em casa, do meu pai, era dez vezes pior, meu pai sempre foi um cara escroto.”
Durante grande parte da vida, Aguasanitaria sofreu com a violência imposta pelo pai, que tentava frear a homossexualidade do filho. “É bizarro, como meus pais e irmãos sabiam que eu era gay e eu não sabia? Imagina o nível de violência psicológica que eu sofri, para que eu não soubesse?”, afirma.
“Meu pai fez de tudo para eu não ter uma adolescência normal, eu só podia ir na igreja. Lá na igreja, sempre diziam que Deus ia colocar uma mulher na minha vida, então eu achava que, se não dava certo, achava que eu não tinha achado a mulher certa. Eu vivia a heteronormatividade compulsória”, se recorda.
Quando o espaço familiar não parecia ser suficiente para tolher o desejo de Aguasanitaria, a família apelou para a religião. “Aos 15 anos, uma liderança da igreja colocou a mão na minha cabeça para expulsar o espírito da homossexualidade. Em nenhum momento, na minha adolescência, eu cogitei a ideia de ser gay, eu sabia que era errado.”
26 formatos de “cura gay”
Hoje, aos 44 anos, Aguasanitaria mora sozinho e há seis anos não conversa com o pai, que se afastou após o filho tornar pública sua sexualidade, e raramente encontra a mãe. O designer é um dos 365 entrevistados da pesquisa “Entre ‘curas’ e ‘terapias’: Esforços de ‘correção’ da orientação sexual e identidade de gênero de pessoas LGBTQIA+ no Brasil”, produzida pela All Out e o Instituto Matizes.
O levantamento encontrou 26 formatos de “cura gay” no Brasil. Anelise Fróes, doutora em antropologia social e coordenadora de pesquisas do Instituto Matizes, prefere dizer que o uso desse termo foi escolhido pois “facilita a comunicação, as pessoas compreendem mais rapidamente, mas de fato, se trata de ‘focos de correção'”.
“Quando encontramos tantas formas distintas de fazer a mesma coisa, a gente compreende como é fácil encapsular as pessoas, de como é fácil perder as pessoas em uma armadilha, para que elas não percebam o que está acontecendo”, sustenta.
Encapsulado, Aguasanitaria desde muito cedo compreendeu, no mundo criado por sua família, que ser gay era algo terrível. “Eu olho para minha infância, lembro de brincar com ursinho de pelúcia e isso ser errado. Eu lembro com oito anos de idade, assistindo um comercial de televisão de bonecas. Eu queria aquelas bonecas, mas na minha cabeça eu sabia que ninguém podia saber disso.”
Na adolescência, o designer chegou a ser impedido de trabalhar pela família e viu o pai planejando seu futuro profissional por áreas que passavam longe de suas ambições. “Eles faziam de tudo para eu não ter acesso ao mundo exterior. Meu pai, inclusive, planejou que eu trabalharia em casa, na oficina mecânica dele, nos fundos da nossa casa. O padrão, é que os pais expulsem os filhos (gays) de casa. Meus pais, não, eles preferiram me trancar em casa, me privar do mundo, para eu não me tornar eu”.
Na pesquisa, os 26 formatos de “cura gay”, ou “tentativa de correção sexual”, como prefere o texto do estudo, são divididos em quatro eixos: saúde mental, religioso, familiar e escolar.
Das 365 pessoas escutadas no levantamento, 193 enfrentaram algum processo de “cura gay” entre os 6 e 17 anos; 83, entre 18 e 24 anos; 18, entre 25 e 29 anos; 15, após os 30 anos; 56 não souberam informar.
Igreja, família e psicologia
O ritual de exorcismo a que Aguasanitaria foi submetido é um dos métodos relatados pelos entrevistados da pesquisa que foram submetidos a processos de “cura gay” em contexto religioso.
Além dele, o estudo lista ameaças e profecias, quando pastores apresentam um futuro incerto para homossexuais, no inferno, por contrariarem Deus; confissões e aconselhamentos, que ocorrem em encontros, retiros, acampamentos e com voto de silêncio; participação em rituais, submetendo a pessoa a diferentes tipos de rezas e orações, tais como passar óleo ungido no corpo, uso de sangue animal no corpo, sessões de descarrego espiritual; e por meio de punições, submetendo os castigados a carregarem peso, passarem pimenta nos dedos, utilizarem munhequeiras, além de terem suas mãos e braços amarrados.
“A gente precisa compreender que de modo geral, é imputado ao sujeito, não somente a ele, um comportamento errado por forças externas, não é o desejo dele e nem sua identidade, é alguma coisa que está fazendo com que você esteja errado. Isso pode ter outros nomes, como ‘demônio’, ‘satanás’ ou uma ‘entidade de matriz africana'”, explica Anelise Fróes.
Aguasanitaria se recorda de viver situação similar. “Nunca passava pela minha cabeça que era possível ser gay, a igreja me ensinava que ser gay era ser possuído pelo demônio. Inclusive, eles diziam que nas religiões de matriz africana, haviam pessoas LGBT porque elas estavam possuídas por demônios.”
Na pesquisa, há relatos sobre violência psicológica imposta nos círculos familiares também, quando os parentes ameaçam internação compulsória, chamam religiosos para oração dentro de casa, obrigam o consumo de medicamentos e hormônios, entre outros.
A busca por ajuda psicológica, feita pela família ou pelo próprio paciente, também é comum. Nesse formato, a pesquisa identificou “tratamentos de regressão, técnicas de exorcismo em consultórios de psicólogo cristão, tratamento de constelação familiar, terapia de desobsessão e tratamento de adequação de postura e voz.”
No texto final do levantamento, o grupo de pesquisadores pede que sejam criadas “ações e estratégias capazes de amplificar e massificar a valorização e a afirmação acerca do reconhecimento das orientações sexuais e identidades de gênero diversas”. Cobram ainda que esses esforços sejam “direcionados a toda a sociedade, de forma irrestrita, e especialmente aos jovens, de modo a desincentivar a violência baseada em identidade de gênero e orientação sexual, visando também assegurar o respeito ao reconhecimento e a autodeterminação de cada pessoa.”
(Texto originalmente publicado em BRASIL DE FATO)
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