Publicado originalmente no Brasil de Fato
Por Fernanda Paixão
O fim da segunda década do século chega diante de um profundo desafio sanitário, social e econômico global. Os impactos sociais, políticos e econômicos da pandemia da covid-19 aprofundaram os problemas da América Latina, a região mais desigual do mundo segundo a Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal).
A América Latina e o Caribe fecham 2020 com a perda de 7,7% do PIB e a queda de 8,1% da economia. Países da região sofreram o colapso dos sistemas de saúde e o grave aumento da pobreza em um contexto de mudanças de governos e de linhas políticas, que refletiram as diferentes respostas à doença que ceifou pelo menos 489 mil mortes apenas na região. Segundo o Fundo Monetário Internacional, o único país do mundo a fechar o ano positivamente será a China, com 1,9% de aumento da economia.
A chegada de projetos neoliberais ao poder e os processos antidemocráticos para derrubar governos progressistas na América Latina ditaram o tom político dos últimos anos. O ano da pandemia da covid-19 foi também um ano decisivo para expor as debilidades de muitos desses governos, que se revelaram perdidos no negacionismo científico e na priorização da economia às custas de milhares de vidas diante de uma crise sem precedentes na história recente da globalização.
O economista argentino Eduardo Lucita destaca três elementos inéditos desta crise. “É uma crise econômica que se soma à de 2008. Os níveis de economia global, seja de lucro, inversão, crescimento ou produtividade, jamais superaram os de 2008. Em segundo lugar, a pandemia é um golpe exógeno à economia, que vem de fora, mas ao mesmo tempo, tem origens endógenas, porque se baseia nas relações mercantilistas do homem com a natureza. O terceiro elemento de caráter inédito é que, dessa crise capitalista, diferente das anteriores, não se sairá dela com o aumento da taxa de lucro, mas com a aplicação e efetividade da vacina.”
Uma mudança de ares na região
Após uma derradeira queda do processo de conquistas dos anos de governos progressistas na América Latina, na chamada “década ganha”, a região foi golpeada com uma sucessão de avanços do neoliberalismo e as novas formas de conquistar o poder. Exemplo disso é o golpe de Estado que sofreram o Brasil, em 2016, e a Bolívia, em 2019, e a manipulação de narrativas e ferramentas da direita para ganhar terreno novamente.
Nesse contexto, o retorno de governos progressistas em alguns países da região e a resposta a esses processos antidemocráticos foram contundentes. Na Bolívia, o resultado das urnas na Bolívia, duas vezes, garantiu a volta do MAS este ano, com a eleição de Luis Arce.
Também se destacam os protestos no Chile contra o modelo neoliberal que rege o país e o plebiscito positivo para superar a Constituição da ditadura de Pinochet; o primeiro ano do peronismo progressista na Argentina com Alberto Fernández, finalizando a era macrista; e as recentes revoltas no Peru que destituíram um presidente após o impeachment de Martín Vizcarra, denunciado pela população peruana como mais um golpe de Estado para a conta da região.
O atual contexto político é lido por Eduardo Lucita como um novo capítulo. “No Brasil, vemos a queda de Bolsonaro e a ascensão da centro-direita, mas um crescimento do PSOL e o apoio do PT à Manuela D’Ávila, o que indica uma possível aliança dos setores progressistas daqui às próximas eleições”, avalia. “Há uma mudança de ares na região. Mas isso será um retorno aos governos progressistas? Penso que irão resgatar experiências de governos anteriores, mas não serão iguais.”
O termômetro parece estar, nesse sentido, na Bolívia. Apesar de ser um país pequeno, que não define o contexto da região, como destaca Lucita, foi um dos governos mais progressistas em seu momento, com Evo Morales.
Enquanto isso, a Venezuela segue resistindo à ofensiva imperialista. O chavismo venceu as últimas eleições parlamentares que renovou a Assembleia Nacional, que desde 2015 era presidida pela oposição ao governo de Nicolás Maduro.
O Equador foi um dos países da região mais impactados pelo colapso do sistema sanitário e funerário com a covid-19. Estudantes e trabalhadores foram às ruas apesar do risco de contágio para protestar contra o governo de Lenín Moreno, em seu último ano de mandato.
Já na Argentina, Alberto Fernández enfrentou a crise da pandemia inaugurando seus primeiros meses de governo. O peronista pôde implementar na agenda as pautas progressistas que marcam a mudança de era no país: o imposto às grandes fortunas, apresentou um projeto de lei do aborto próprio – cuja etapa final se inicia nesta terça-feira (29), com o debate no Senado – e começou a vacinação contra a covid-19 antes do fim de 2020, com a compra de 300 mil doses da russa Sputnik V.
Avanço da direita
O Uruguai é um caso emblemático na região. Considerado o mais progressista por sua legislação e os 15 anos de governo de esquerda, este ano foi marcado pelo início de um governo neoliberal, com Pepe Mujica aposentado e, recentemente, com a morte do último ex-presidente, Tabaré Vázquez. O Partido Frente Ampla tem, assim, um desafio de renovação.
Atualmente com 60% de aprovação popular, o direitista Luis Alberto Lacalle Pou inaugurou um novo capítulo neoliberal no país. Já aprovada pelo parlamento, a Lei de Urgente Consideração (LUC), apresentada pelo mandatário, é um projeto ambicioso de 478 artigos que abrange temas desde segurança pública até educação.
A lei habilita a livre importação de combustíveis e derroga a obrigatoriedade da participação do Congresso Nacional da Educação, garantida pela Lei Geral da Educação. A LUC é alvo de campanhas constantes por sua revogação. Espera-se que um plebiscito seja convocado para o próximo ano para que se tenha um posicionamento popular sobre a medida.
Segundo o jornalista e escritor uruguaio Raúl Zibechi, a iniciativa tenta apagar a gestão da Frente Ampla e o papel do Estado. “É uma lei completamente neoliberal, que facilita as privatizações. O Uruguai possui empresas estatais muito importantes para o país, de água, telefonia, correios. A LUC é uma legislação perigosa para o futuro do país”, conclui.
Já o Peru, com um atual governo de centro-direita que gerou um temporário consenso, enfrenta uma profunda crise institucional, onde 59% da população rejeita a composição do Congresso Nacional. Em um mês, o país teve três presidentes, após o parlamento aprovar o impeachment do presidente Martín Vizcarra, alegando envolvimento em esquema de propinas de obras públicas.
O Observatório de Conjuntura da América Latina definiu a destituição do presidente Martín Vizcarra como o resultado da consolidação de forças herdeiras do fujimorismo, em referência à corrente proveniente da ditadura de Alberto Fujimori, instalada por 10 anos no Peru.
O atual presidente, Francisco Sagasti, repudiou a repressão policial às manifestações populares que denunciaram o impeachment como um golpe de Estado. Os protestos se deram nos seis dias que correram o governo-relâmpago de Manuel Merino, e terminaram com a morte de dois jovenS, provocadas por forças policiais: Jordan Inti Sotelo Camargo, de 24 anos, e Jack Brian Pintado Sánchez, de 22 anos.
O presidente destituído também se manifestou sobre o caso em seu Twitter: “Lamento profundamente as mortes ocorridas à causa da repressão deste governo ilegal e ilegítimo”, afirmou Vizcarra.
Economia em queda
As previsões para o próximo ano não são animadoras para a região latino-americana e o Caribe: a economia deve crescer apenas 3,6%, segundo o relatório do FMI. O Brasil sofreu uma queda de 5,8% da economia, com projeção de apenas 2,8% de crescimento para 2021. O México é o seguinte da lista, com queda de 9% e perspectiva de crescimento de 3,5% para o ano que vem.
Com o avanço de projetos neoliberais na região, o Mercosul também fica enfraquecido, especialmente pelo gigante Brasil, principal integrante econômico do bloco. “Uruguai e Paraguai não têm peso no Mercosul, e muitas vezes foram deixados de lado pela Argentina e pelo Brasil nos acordos”, analisa Lucita. “Acredito que, por isso, agora, esses países se voltaram ao neoliberalismo. O Uruguai fez acordos e tratados com os Estados Unidos e o Paraguai busca ligar-se à Aliança para o Pacífico”.
Segundo os últimos dados do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das Nações Unidas, o Brasil caiu cinco posições no ranking de 189 países, estando agora em 84º lugar. Na América Latina, o país está atrás do Chile, da Argentina, do Uruguai e da Colômbia. No entanto, os dados ainda não refletem os impactos da pandemia.
Para o próximo ano, acompanharemos as eleições do Peru, do Equador e do Chile, que irão refletir a ebulição social desses países.
A relação entre a região e o novo presidente Joe Biden, nos Estados Unidos, será medida em grande parte pelo nível de diálogo que o democrata irá travar com a Venezuela. Antes da saída de Donald Trump, a direita norte-americana garantiu duas posições-chave: Luis Almagro como diretor-gerente da OEA e Mauricio Claver-Carone como diretor executivo no BID, cargo historicamente preenchido por latino-americanos, ocupado por um estadunidense pela primeira vez na história.
Edição: Luiza Mançano