Por Kakay
“Cego é o que fecha os olhos e não vê nada.
Pálpebras fechadas, vejo luz. Como quem olha o sol de frente.
Uns chamam escuro ao crepúsculo de um sol interior.
Cego é quem só abre os olhos quando a si mesmo se contempla. ”
– do mestre Mia Couto, poema “Cego”
Vivemos uma época partida ao meio. Parte de nós perdeu-se na dor das nossas desesperanças, das nossas frustrações e das nossas privações reais. Seja pela perda de alguém querido, ou pela consciência de que não dá para conviver no dia a dia com quem tem outro sentimento de mundo. Tenho falado, há tempos, que a agonização do momento não permite mais pensar na politização esquerda x direita. O que nos apresenta é civilização x barbárie.
E aí é que, mais do que nunca, entendemos o valor e o sentido dos que, ao longo da vida, se encostaram em nós por identidades humanistas. Nessa hora, a gente pode até sentir a falta dos que ficaram pelo caminho, por terem optado pela barbárie ou pela cumplicidade sórdida do silêncio e da omissão. Mas o que realmente vale é a consolidação do afeto de quem olha o mundo pela lente da solidariedade que nos une.
Muito jovem, perdi a visão de um dos olhos em um acidente. Depois de várias operações, uma delas em Moscou, consegui voltar a ver luz, embora não tenha voltado a enxergar. Mas a luz que vejo já me conforta e me situa. E, hoje, vejo o mundo muito sob o prisma da luz que indica o caminho da esperança. Não guardar ódio e não nos levar muito a sério nos posiciona no xadrez da vida. Mas a leveza dessa postura não pode significar a covardia do silêncio ou da omissão. Em momentos como o que vivemos, é fundamental ter lado e nos posicionarmos. Não estamos falando tão somente da sobrevivência física, mas também de definir quem somos e quais valores nos sustentam. Como nos ensinou Padre Antônio Vieira: “A omissão é o pecado que com mais facilidade se comete, e com mais dificuldade se conhece”.
Na angústia do isolamento, no auge da pandemia, fiz da poesia um refúgio e, na impossibilidade do abraço, recitei em todos os finais dos dias as minhas “poesias ao cair da tarde”. Uma maneira de não deixar a solidão ser a minha única companheira, mas de dividi-la e espraiar o carinho. Um afago à distância rompendo a reclusão.
Com a expectativa de certa normalidade, resta-nos fazer essa análise retrospectiva: quem estava, e está, conosco na trincheira da resistência? Não é só na defesa, que deveria ser óbvia, dos valores democráticos. É além da obviedade.
Foi bom constatar que os valores da solidariedade e dos sonhos de igualdade são os mesmos que nos unem na lida por um Estado que se pretenda democrático. Não há livro nenhum que ensine isso tão bem quanto o enfrentamento real de uma crise profunda. Crise que testa o caráter e que define os canalhas. Que nos coloca cara a cara com nós mesmos. Não há psiquiatra algum que nos faça olhar tão profundamente os nossos “eus”. Na esteira da grande Cecília Meireles:
“Tu tens um medo
Acabar.
Não vês que acaba todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.”
E ainda estamos no meio da tempestade, sem poder ter a tranquilidade de um mar sereno. O que nos conforta é que, a essa altura, já sabemos, em boa parte, quem é que está ao nosso lado. Vale muito ter a alegria e a maturidade de valorizar nossos afetos e não ficar na sombra e na penumbra opaca dos que ficaram pelo caminho.
Há várias maneiras de enfrentar essas nuvens que endureceram e viraram muros e que retiram, diariamente, o ar que sustenta a vida.
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O humor, a literatura, a poesia, a amizade e o riso solto, tudo isso desestrutura os fascistas
Não usaremos a violência, que é atributo próprio deles. Não ganharemos só com a ironia, pois eles não conseguem captá-la. Não discutiremos ideias, pois precisaria pressupor que eles tivessem alguma profundidade. Mas seguiremos como encantados, um ao lado do outro, como num tempo da delicadeza. Romperemos um círculo imaginário de giz que teima, muitas vezes, em nos aprisionar. E esse rompimento nos fortalecerá de maneira indelével na permanente luta por um mundo mais justo e igual. Isso nada e nem ninguém pode tirar de nós.
Com a leveza do grande Mário Quintana, no Poeminha do Contra:
“Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!”