A nova secretária de Políticas para Mulheres, Fátima Pelaes, representa o exato avesso de todas as bandeiras feministas.
Em entrevista à editora Casa Publicadora das Assembleias de Deus, há três anos, ela afirma que até 2002 defendia a descriminalização do aborto, mas, depois de “conhecer jesus”, entendeu que “o direito de viver tem que ser dado para todos”.
A nomeação de uma Secretária de Mulheres evangélica e que “não levanta bandeiras contrárias à bíblia” caiu como uma bomba num Brasil inflamado e politicamente deprimido.
Com o claro intuito de minimizar a polêmica, Pelaes publicou uma nota segundo a qual seu posicionamento sobre a descriminalização do aborto não vai afetar o debate de qualquer questão à frente da secretaria, e que a mulher vítima de estupro deve receber total apoio do Estado.
Um discurso bem diferente daquele proferido durante uma sessão na câmara sobre o Estatuto do Nascituro: “Nós enquanto representantes do povo brasileiro temos que pensar: que direito nós mulheres temos de tirar uma vida?”
Na terra de onde venho, chamamos isso de tapeação.
O governo interino aliás, é muito bom em tapear: justificou o seu Ministério só de homens brancos com a “dificuldade de encontrar mulheres” e agora tenta criar uma imagem libertária sobre uma mulher notadamente conservadora e fundamentalista, para nos convencer do impossível: de que Fátima Pelaes tem alguma condição de nos representar.
Ela não tem.
Não importa quantas notas publique. Nós sabemos que o fundamentalismo religioso é um câncer moderno e sabemos, sobretudo, o quão incapaz alguém pode ser de lutar por pautas nas quais não acredita.
Isto é tão óbvio que, na mesma nota, Paeles afirma que trabalhará incansavelmente para combater “qualquer tipo de violência contra a mulher”, mas para mulheres verdadeiramente preocupadas com o combate ao machismo – e não com o que a bíblia manda que façamos – esta é uma visão superficial e rasa da questão.
Violência contra a mulher não pode se limitar à Lei Maria da Penha e às campanhas antiassédio no carnaval. O problema é estrutural e infinitamente maior que isso, e alguém que ainda baseia as próprias opiniões na bíblia não será capaz de solucioná-lo (para início de conversa, não será capaz sequer de tentar).
É difícil para nós conceber um trabalho engajado partindo de quem sequer compreende a nossa luta. E alguém que discursa baseada na bíblia em plena Câmara, alguém que fala de aborto como quem fala de alicerçada no clichê do “direito à vida” definitivamente não compreende a nossa luta.
Convenhamos, o governo interino já foi suficientemente claro quanto ao único lugar que acredita estar reservado para as mulheres: o lugar decorativo (curiosamente, o mesmo lugar que o mordomo sempre detestou). “Bela, recatada e do lar” é o novo modelo de mulher que a extrema direita quer nos empurrar goela abaixo.
O governo pós-golpe está sendo articulado, em todos os detalhes, a nosso desfavor, e isso não é nenhuma surpresa: um golpe nitidamente machista e misógino precisa respeitar as próprias origens, precisa ser fiel à proposta inicial. E a proposta inicial é um país feito por homens e para homens, onde a mulher funcione exatamente como aquela que nos foi apresentada como modelo de primeira dama.
Não houve “apenas” fascismo e machismo no golpe. Houve também o ódio megalomaníaco por ver minorias em um lugar de poder, por ver uma mulher em um lugar de poder, e é natural, embora não menos sórdido, que a direita inflamada nos queira retaliar. Foi assim com os artistas e assim está sendo com as mulheres – e continuará sendo assim, cada vez mais ostensivamente, até o tão esperado dia da queda do governo golpista.
Diria Foucault que não há poder fora da fala. Toda relação de poder envolve um discurso e demanda necessariamente, portanto, um lugar de fala. E o governo interino é tão genial no ofício de dizimar nossas conquistas e nossa liberdade, que puxa o nosso tapete da maneira mais eficiente possível: nos calando.
Retirar mulheres dos Ministérios é silenciamento. Entregar uma secretaria de mulheres a uma mulher que não dialoga com nossas pautas também é silenciamento. Este é o governo do silenciamento ardiloso e da violência institucionalizada.
Somos violentadas quando a mulher que dizem nos representar numa secretaria não sabe que o machismo está em todas as coisas, inclusive na bíblia. Somos violentadas quando uma mulher é arrancada do poder. Somos violentadas quando temos um governo que não apenas é insensível às nossas questões: ele conhece todas elas e se empenha no objetivo de agravá-las.
Contagiados pela atmosfera antidemocrática e pela sensação de que podem absolutamente tudo, os golpistas passam dos limites. Atrevem-se a um Ministério só de homens brancos e indicam uma Secretária de Mulheres que não contempla nenhuma de nossas pautas.
Não podo o meu próprio otimismo (por vezes ingênuo, é verdade) ao dizer que mesmo com um Ministério só de homens, e mesmo com uma Secretária de mulheres fundamentalista, nós nós não perdemos tudo.
Somos muitas. E precisamos ocupar os partidos, ocupar os espaços públicos, fortalecer o nosso discurso nas ruas, em nossas casas, em nossos círculos.
Parafraseando: cadê as mulheres de grelo duro desse país?