Maior rede de cafeterias do mundo, com 35 mil pontos de venda em 83 países, a Starbucks mantinha em seu programa de “aquisição ética” produtores flagrados com trabalho escravo e infantil, além de cafeicultores autuados por descontos ilegais nos salários, falta de fornecimento de água potável e de equipamentos de proteção básicos para a colheita do grão.
Os casos são retratados na investigação “Por trás do café da Starbucks”, publicada pela Repórter Brasil. Ela mostra que ao menos quatro fazendas de café em Minas Gerais onde a fiscalização do poder público flagrou violações trabalhistas em 2022 possuem – ou possuíram até recentemente – o selo C.A.F.E. Practices, programa de certificação que, segundo a Starbucks, avalia fornecedores em mais de 200 indicadores ligados à qualidade e responsabilidade socioambiental. Em duas das quatro fazendas, 18 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão.
Um dos casos destacados é o da fazenda Mesas, em Campos Altos, onde 17 trabalhadores foram resgatados em agosto de 2022. No grupo havia um adolescente de 15 anos e outros dois jovens de 16 e 17 anos. O trabalho exposto ao sol ou à chuva e que exige manuseio de cargas pesadas – a saca de café pesa 60 quilos – está enquadrado na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil e é proibido para jovens de 16 a 18 anos. Já o trabalho de menores de 16 é proibido em qualquer circunstância, com exceção da categoria aprendiz.
A fazenda Mesas é administrada por Guilherme de Oliveira Lemos, que também comanda a fazenda Ourizona e a torrefadora Café Ourizona, em Córrego Danta. Um mês antes do flagrante de trabalho escravo, a empresa de Lemos comemorou nas redes sociais a obtenção da certificação da Starbucks. Ambas as propriedades também são certificadas pela Rainforest Alliance, selo renovado em março deste ano, mesmo após o resgate dos trabalhadores.
Evidências indicam a administração conjunta das propriedades. Trabalhadores da fazenda Mesas que estavam na informalidade tiveram suas carteiras registradas em nome da Ourizona depois da operação dos auditores fiscais do Trabalho.
Conforme o relatório de fiscalização, o empregador não fornecia nem as ferramentas básicas para a colheita, como rastelo, bolsa e pano para armazenar grãos. Uma trabalhadora contou que precisava comprar luva nova a cada quatro dias para proteger as mãos ao colher os grãos. Os R$ 5 por luva saíam de seu bolso, assim como o valor do chapéu, de botinas, da comida e do alojamento – tudo em desacordo com as leis trabalhistas.
Na lavoura não havia local montado para o almoço. No chão ou dentro de um ônibus, trabalhadores consumiam uma comida fria ou aquecida numa lata com álcool. Sem banheiro químico, as necessidades eram feitas no mato ou no cafezal.
Por meio de seu advogado, Lemos afirmou que não responderia à reportagem. A Starbucks admitiu que a Mesas é certificada, mas não explicou se será suspensa.
“Nossos registros não mostram queixas trabalhistas ativas, litígios ou reclamações abertas contra Guilherme de Oliveira Lemos”, afirmou a empresa. A Rainforest Alliance confirmou a certificação e informou que duas auditorias foram feitas no local. “De acordo com os relatórios da Entidade Certificadora enviados à Rainforest Alliance para a auditoria de maio de 2023, não havia informações sobre essas inspeções em agosto de 2022”, alegou.
‘Erro do RH’
Outro caso de adolescente trabalhando irregularmente é o da fazenda Cedro-Chapadão, em Ilicínea, administrada juntamente com a fazenda Conquista por Sebastião Aluísio de Sales, esposa e filhos.
Em julho de 2022, um jovem de 17 anos foi resgatado de condições análogas à escravidão nos cafezais da família. Ele e outros 25 haviam saído de Irecê (BA), a 1.500 quilômetros de distância, para colher café nas duas fazendas. A fiscalização identificou outras 11 violações trabalhistas.
Segundo Rodrigo Sales, filho de Sebastião, a contratação do jovem de “17 anos e 9 meses” ocorreu por “erro do nosso departamento contábil de RH [Recursos Humanos]”. Documentos acessados pela fiscalização trabalhista apontam que outro adolescente, de 16 anos, havia sido contratado para colher café naquele ano.
O resgate do jovem ocorreu na fazenda Conquista e não na Cedro, que tem o selo C.A.F.E. Practices. Mas as práticas eram as mesmas nas duas propriedades, e os trabalhadores também haviam sido contratados para atuar na Cedro. “As fazendas Reunidas Cedro-Chapadão são um grupo, portanto a administração é feita de forma conjunta, os trabalhadores safristas estão cientes do cronograma de trabalho para colheita, que se inicia na fazenda Conquista e segue para as demais fazendas conforme a maturação do café”, admitiu Rodrigo Sales.
A fiscalização diz que o empregador não disponibilizava água potável e equipamentos de proteção, como luvas, chapéus e botas. No alojamento não havia roupas de cama, armários nem local apropriado para refeição. O grupo ainda precisou pagar pelas passagens de ônibus desde Irecê, o que era obrigação do contratante. Em depoimento, o jovem resgatado disse que lhe foram descontados R$ 400 da passagem, além de despesas de alimentação.
“As fazendas Reunidas Cedro-Chapadão jamais submeteram qualquer trabalhador a condições degradantes, trabalho forçado ou condições análogas à escravidão”, afirma Rodrigo Sales. Segundo ele, a Fazenda Cedro foi certificada pela C.A.F.E. Practices em 2021, mas só participou do programa em 2022 e não houve comercialização com a Starbucks no período. Já a multinacional se limitou a dizer que a propriedade não está mais ativa no programa, sem informar quando saiu e o porquê.
Sem surpresa
Em 2022, foram 52,8 milhões de sacas de café colhidas, o que garante ao Brasil o posto de maior exportador mundial. Na ponta da cadeia, a Starbucks Corporation registrou lucro líquido de US$ 3,2 bilhões em 2022 e afirma comprar 3% do café produzido no mundo. Nos últimos dois anos, 14 empresas e cooperativas exportaram o café brasileiro para unidades da multinacional nos Estados Unidos, segundo dados alfandegários acessados pela reportagem.
Não há “desculpas” para não garantir a contratação formal de safristas e seus direitos trabalhistas, avalia Gustavo Ferroni, da Oxfam Brasil: “Isso não depende de uma articulação de políticas públicas, mas do próprio setor”. Para Ferroni, a C.A.F.E. Practices seria mais efetiva se as auditorias do programa ocorressem durante a safra, fossem verdadeiramente surpresas (as visitas são avisadas com antecedência) e se houvesse diálogo com atores de fora das fazendas, como sindicatos.
Em 2022, o cultivo de café foi um dos cinco setores com maior volume de denúncias de exploração de trabalhadores no Brasil. Ao todo, 39 propriedades de café foram fiscalizadas e 159 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão.