Tolstói disse que as famílias felizes se parecem, mas as famílias infelizes são infelizes cada qual a sua maneira. É uma frase célebre, e que abre Anna Karenina, um dos maiores romances jamais escritos. E lá vou eu para uma digressão: Anna é, ao lado de Capitu, de Machado de Assis, a adúltera mais fascinante da literatura. As duas se entregaram: Anna, ao ficar em estado de choque quando seu amante nobre, Vronski, caiu do cavalo numa corrida. Capitu, ao mostrar dor maior que a da viúva no velório do amante, Escobar, melhor amigo de seu marido.
Anna terminou sob as rodas de um trem, num suicídio. Capitu, de olhos oblíquos e dissimulados, foi repudiada pelo marido e morreu solitária no abandono europeu. Nem Tolstoi nem Machado trataram bem suas formidáveis adúlteras. Um filósofo escreveu que é mais fácil não começar do que terminar. Para as duas, teria sido definitivamente mais fácil não começar uma história fora do casamento.
Mas não.
Não era sobre isso que eu ia falar.
Era sobre as famílias infelizes. Elas não nascem infelizes quase nunca. São felizes, em um simples fato ao acaso as faz infelizes. Penso neles, na família Brandão. Minha mente recua alguns anos, e ali os vejo. Brandão, a mulher e as duas filhas. As garotas são lindas e têm uma característica que multiplica o encanto da mulher bonita: elas parecem não se dar conta de sua beleza de fazer bispo olhar para trás e chutar poste. As Filhas do Brandão, no seu apogeu, eram lendas em vida no seu círculo.
Era uma família feliz. Casa bonita, o pai bem colocado, a mãe vigorosa e enérgica, e as filhas que, bem, filhas que deslumbravam. Um dia, uma delas, a mais velha, olhos verdes como as águas ao entardecer do mar de Salvador, errou na dose de alguma droga e perdeu a razão para nunca mais recuperá-la. A família feliz se tornou infeliz para sempre.
Vi isso de perto. A filha caçula fez o chão tremer para mim. Já escrevi aqui que, segundo Hemingway, três vezes o chão treme na vida dos apaixonados. Não mais que três. Está lá, numa das passagens de Por Quem os Sinos Dobram, um romance quase tão bom quanto Anna Karenina.
A caçula dos Brandão fez o chão tremer para mim. Às vezes me pergunto se também fiz o chão tremer para ela, mas é apenas um devaneio sem sentido. Talvez sim, talvez não. Rio agora do choro tolo e convulsivo que me tomou quando a perdi. Os anos me tornaram um cínico amoroso, reflito.
Perdi o contato com a família.
Soube há pouco que a mãe das garotas morreu. Quase ninguém foi avisado.
Estou aqui com o número do celular da caçula.
Não sei se terei coragem para ligar.
De resto, para dizer o quê? Que lamento as ruínas do mundo em que ela foi uma jovem rainha? Que na minha memória a felicidade da família jamais foi perdida?
Sêneca.
Sêneca falou no perpétuo vaivém de elevações e quedas. De como é sábio se preparar para isso. A vida é feita de elevações e quedas. No campo pessoal, profissional, amoroso.
Eu queria reagir com sabedoria à queda da família Brandão. Mas não consigo. E então subverto a realidade aqui neste texto. E crio, como num sonho bobo, um final em que nada destruiu a felicidade daquele quarteto que tanto admirei e amei. No momento em que ia tomar a dose que a enlouqueceria, a mais velha decidiu, como um samurai, combater o vício com a espada da determinação. Derrotou-o gloriosamente.
O pai, a mãe e as duas filhas: ali estão os quatro, na varanda floreada em que recebiam os chegavam encantados como eu, sorridentes como diante de um fotógrafo.
Felizes para sempre.