Filme mostra a hipocrisia do “cidadão de bem”. Por José Geraldo Couto

Atualizado em 1 de outubro de 2020 às 22:59
Cena do filme “O diabo de cada dia”. Foto: Reprodução

Publicado originalmente no Outras Palavras:

Por José Geraldo Couto

No mar de filmes e séries da Netflix – em sua maioria ruins, medíocres ou dispensáveis – há um lançamento mundial recente (de 16 de setembro) que merece atenção especial. Estou falando de O diabo de cada dia, de Antonio Campos.

Aos 37 anos, o nova-iorquino Campos, filho do jornalista brasileiro Lucas Mendes e da produtora independente Rose Ganguzza (ex-empresária de Pelé na época em que este jogou no Cosmos), já tem uma filmografia consistente, marcada por graus variados de violência, loucura e perversão (Depois da escolaSimon assassinoChristine).

Em O diabo de cada dia todos esses elementos estão interligados e exacerbados, traçando um retrato abrangente da insanidade norte-americana na segunda metade do século XX.

Com base em romance de Donald Ray Pollock, que faz a narração em off, o filme tem, significativamente, duas guerras como balizas temporais: a Segunda Mundial e a do Vietnã. Acompanhamos de início o drama do ex-combatente Willard (Bill Skarsgård). Ele traz do front um trauma profundo, o de ter sacrificado um companheiro de farda crucificado pelos japoneses. Com seu filho Arvin, Willard entrega-se a orações e rituais que se tornam cada vez mais bizarros a partir da morte precoce da sua esposa.

O protagonismo passa então para Arvin (encarnado por Tom Holland na idade adulta), que cresce criado pela avó numa cidadezinha profundamente religiosa e moralista do meio-oeste americano.

Inventário de males

Mas não se trata de um protagonismo propriamente dito, pois o foco é dividido em vários personagens. Vão entrando em cena uma porção de figuras sinistras, entre elas dois pastores evangélicos. Um deles (Harry Melling), durante um culto, despeja aranhas na própria cabeça para provar que o Senhor o libertou da aracnofobia. A cena faz pensar no Zé do Caixão. Depois disso o santo homem matará uma pessoa, com a convicção de que o poder da fé poderá ressuscitá-la. Seu sucessor na paróquia (Robert Pattinson) é um insidioso sedutor de meninas virgens.

Em outra cidadezinha da região, um fotógrafo frustrado e sua mulher divertem-se dando carona na estrada a rapazes solitários – e o que fazem com eles só mesmo vendo o filme para saber. O agravante é que o irmão da moça é o xerife local, disposto a qualquer coisa pela reeleição.

Assassinato, pedofilia, suicídio, fanatismo religioso, necrofilia, chantagem política, todo um catálogo de crimes, taras e bizarrices está presente nessa narrativa, conduzida com habilidade de modo a entrelaçar vários personagens e situações inicialmente distantes uns dos outros. É como uma minissérie condensada em pouco mais de duas horas.

Mas o mérito maior do escritor e do diretor, a meu ver, consiste em manter um certo pulso para não resvalar no modo “sucessão de desgraças” que caracteriza um Iñárritu, por exemplo, nem no regozijo com as aberrações que encontramos em certos filmes de Todd Solondz. Aqui, de alguma forma, trata-se de identificar no próprio magma social e cultural a origem do comportamento perverso e destrutivo. Não há uma geração aleatória de desvios psicológicos e morais.

O motivo visual e simbólico da cruz está presente em praticamente todas as sequências, não para exaltar a religião, mas para enfatizar seu peso. Outro signo fundamental é a arma – única herança material deixada por Willard a seu filho. Ambos, a cruz e o revólver (versão anglo-saxônica da “cruz e espada” da colonização ibérica nas Américas), configuram como que uma sina, uma maldição.

O que está em questão, no fundo, é a própria noção de “cidadão de bem”, temente a Deus, defensor da pátria e da família. Como se vê, é um filme atualíssimo – e que tem bem mais a ver com o Brasil de João de Deus, Damares e Flordelis do que a mera circunstância de o diretor ser filho de um brasileiro.

Balanço de Gramado

No festival de Gramado que terminou na semana passada, os dois longas brasileiros mais premiados são realmente notáveis: King Kong en Asunción, de Camilo Cavalcante (melhor filme, ator, prêmio do público, música), e Um animal amarelo, de Felipe Bragança (roteiro, atriz para Isabel Zuaa, prêmio da crítica). Os dois, curiosamente, se passam em boa parte fora do Brasil.

King Kong… narra o ocaso trágico de um matador profissional (o excepcional Andrade Júnior, que morreu antes de ver o filme pronto) acossado pelos fantasmas que acumulou ao longo da vida. É em parte um road movie por um território vasto e acidentado que o protagonista percorre de ônibus, de carona e principalmente a pé, entre os confins da Bolívia e a capital paraguaia, com cortantes flashbacks no sertão nordestino brasileiro.

Um animal amarelo é uma fábula desconcertante que acompanha a saga de Fernando (Higor Campagnaro, menção honrosa em Gramado), um aspirante a cineasta em busca da própria identidade e a de seu país. Nessa procura, acompanhado eventualmente por um monstro devorador de gente que lembra o bicho-papão das histórias infantis, ele passa por Moçambique e Lisboa, envolve-se com um grupo de rebeldes africanos que defecam diamantes e com uma garota portuguesa que tem um rubi na vagina.

Entre o insólito e o dolorosamente real – as favelas moçambicanas, a ascensão fascista no Brasil –, Bragança constrói uma vertente radicalmente pessoal de realismo fantástico, que em alguns momentos lembra o fabuloso fabulista português Miguel Gomes, de Tabu As mil e uma noites.