Escrevi esse conto com uns 30 anos. É minha ficção de que mais gosto. Nela estão as coisas que me são obsessivas na escrita fora do jornalismo: a melancolia, o fim do amor e o reencontro patético.
Reencontro
“Você não mudou nada. Sempre com cara de criança. Sempre calado. Pensativo. Às vezes eu tinha que fazer a pergunta e a resposta para que nossas conversas não morressem.”
Fabio arregalou os olhos e encarou Lenira. Fazia cinco anos que não a via, mas parecia que estivera com ela na noite anterior. Fora a roupa, agora muito mais elegante, ela não mudara nada. Os cabelos pretos como uma noite siberiana de inverno continuavam a escorrer pelas suas costas como uma capa de super-herói.
Os óculos pretos de aro fino, antes sem marca, agora Armani, ainda lhe davam o ar ingenuamente sexy de professora. Os grossos lábios vermelhos sem batom – batom para quê? Um fêmur deslocado aos 15 anos deixara a perna direita de Lenira ligeiramente menor que a esquerda. Fabio adorava vê-la caminhar. Ninguém se movia com tanta graça, achava. O maior espetáculo da Terra. Lenira vestia um tailleur rosa de executiva. Subitamente passou pela cabeça de Fabio a idéia absurda de dizer coisas assim: “Ei, você sabe que eu prefiro você de jeans e camiseta branca, como no passado? Você ainda fica com as bochechas vermelhas depois do amor? Você pode me deixar ver, pela última vez, aquela tatuagem de golfinho na virilha direita?”
Quantos anos ela já tinha? Trinta? Não, 31. Era quatro anos mais nova que ele. Pensou na Sofia de Machado de Assis. “O tempo, como um escultor vagaroso, a ia esculpindo ao correr dos longos dias.” Uma vez, no primeiro aniversário do dia em que alugaram um apartamento e foram morar juntos, escrevera isso no cartão em que lhe dera as obras completas de Machado em três volumes. Quando o deixou, ela não as levou. Os livros de Machado jaziam desprezados numa estante do pequeno apartamento em Pinheiros. Fabio se perguntou o que Lenira teria feito do cartão. Provavelmente o jogara fora, pensou. Ela jamais guardara nada, ao contrário dele.
“Você deve ter achado estranho eu aparecer depois de tanto tempo, não é, Fabio? Telefonar e marcar um almoço exatamente nesse restaurante.”
Esse restaurante. A cantina Speranza, na Bela Vista. Freqüentavam nos bons tempos. Um restaurante charmoso e barato, bom para gente de dinheiro contado como ele ontem e hoje e para ela ontem.
“Você nunca quis ir a outros restaurantes. Sempre a Speranza, sempre a lasanha à romanesca, sempre a Coca-Cola, sempre a musse de chocolate. A primeira coisa em que eu reparei hoje foi o seu pedido. Lasanha e Coca. Se pelo menos fosse Coca light. Quase que eu falei quando o garçom anotou o pedido: e musse de sobremesa para ele. Fabio, Fabio, você nunca vai mudar?”
Fabio achou no tom de voz de Lenira alguma coisa que sugeria que ela podia estar à beira de lágrimas ou gargalhadas. Não estava preparado para lágrimas. Preferia gargalhadas. Era mais fácil enfrentá-las.
“Eu precisava dizer certas coisas. Coisas que não foram ditas.”
Fabio fez um gesto com as mãos como dizendo que não, ela não tinha que lhe dar satisfação nenhuma. Algumas palavras talvez tivessem importância num passado já remoto, não agora.
“Quando eu decidi ir embora, sabia que não conseguiria falar com você. Olhar para você e dizer adeus. Mas imaginava escrever uma carta que explicasse tudo. Aí eu peguei a caneta e… e nada. A gente pensa que certas coisas são mais fáceis de escrever do que de dizer, mas isso é uma ilusão.”
Passou rápido por Fabio a lembrança de que Lenira jamais fora, mesmo, uma boa redatora. Estudara jornalismo, mas depois se fixara no departamento comercial de uma revista.
Ela tirou os óculos e os pôs na mesa. Era um sinal, Fabio sabia, de que estava emocionada. Era como se a vista turva a ajudasse a enfrentar melhor certas situações difíceis. Fabio sentiu uma súbita e absurda vontade de pedir a ela que caminhasse pelo restaurante, para ver aquele andar inigualável e majestoso em sua leve oscilação, mas tinha noção do ridículo de tal pedido e permaneceu calado.
“Não sei quantas vezes iniciei um bilhete de explicação e rabisquei tudo. No fim desisti. O silêncio era mais digno do que uma carta vulgar de despedida, cheia de lugares-comuns e de erros de português.”
Uma amiga de Lenira lhe telefonou, um dia, para dizer que ela decidira sumir um pouco para pensar na vida. Deixara o emprego, deixara o namorado, deixara a cidade, deixara tudo. A amiga disse que ela fora viajar para ninguém sabia onde. Fabio dormira depois, algumas vezes, com essa amiga de Lenira. Aprendeu ali que o sexo pode ser sinônimo de desespero. Naqueles dias, Fabio só se sentia vivo quando estava dentro de uma mulher.
Alguns meses depois da partida de Lenira, Fabio a viu numa coluna social, mulher de um homem 20 anos mais velho que ela, Miguel. Ele era um figurão do mundo publicitário. Conquistara leões de todas as espécies em Cannes e era sócio de americanos numa grande agência. Lenira era sua segunda mulher. Pouco mais de um ano depois, leu também numa coluna social que Lenira e Miguel tiveram um filho. Quase desesperara ao sabê-la perdida.
“Quando nós fomos morar juntos, eu pensei que era para sempre, Fabio. Mas tudo mudou, depois. Você, Fabio. Você mudou, cada vez mais monomaníaco. Primeiro ouvia músicas variadas, depois só o Nirvana, depois só o Acústico do Nirvana, depois só My Girl. Deus, às vezes passo dias sem conseguir tirar essa maldita música da cabeça.” Cantarolou um trecho, desafinada como sempre. Ninguém é perfeito, pensou Fabio.
Ocorreu a ele que não poderia haver prova de amor maior do que gostar de ouvir cantar uma mulher desafinada. E ele gostava de ouvi-la. “My girl, my girl / Don’t lie to me / Tell me where did you sleep last night.”
A história da música, sabia Fabio, era a história deles dois, a história de milhares, milhões de casais, aqui, ali, em todos os lugares. A falência de um romance, a tristeza, o desamparo, a perplexidade. Sempre a mesma história. Ridículo achar que um caso de amor possa ser especial, quimera vã e despropositada de amantes pretensiosos. Ocorreu a Fabio que Lenira entrara no restaurante acusando-o de não ter mudado em nada e agora o acusava de ter mudado em tudo. O que poderia se chamar de caso sem solução.
“Depois foram os livros. Você lia tudo, me fez ler até Guerra e Paz. Demorei seis meses, mas consegui. Depois só Machado de Assis, depois só um conto, sei o nome, Um Capitão de Voluntários. Quantas vezes você leu esse conto? Cento e oitenta, 320? E ainda dizia que era um conto menor do Machado de Assis. Menor! Eu comecei a ficar com medo. Eu tinha medo de você. Ainda tenho. Você pode imaginar o que é, de repente, descobrir que o homem com quem você dorme é um desconhecido? Um… um… um lunático?”
Lenira olhou para um jovem casal numa mesa ali perto. Estavam completamente entretidos um com o outro. Por baixo da mesa ela tocava os pés dele. De tempos em tempos ele se erguia parcialmente sobre a mesa para beijá-la.
“Parece que estou vendo a gente alguns anos atrás. Acho que um relacionamento começa a terminar quando as conversas começam a terminar. Aquele casal ali. Parece que eles poderiam conversar dias, anos sem parar. Sabe do que eu mais sinto saudade? Das nossas conversas do início. Eu gostava tanto do som da sua voz dizendo meu nome.”
Lenira fez uma pequena pausa como para se lembrar de alguma conversa que tivera, no começo, com Fabio. Depois prosseguiu. “Que coisa mais absurda ter 20 anos e acreditar em palavras tolas e sem sentido como amor. Ora, o amor. Devia estar escrito assim em todos os dicionários. Amor: o mesmo que ficção. E cuidado ao usar porque machuca.”
Lenira começou a chorar baixinho. Fabio pensou em abraçá-la, confortá-la, mas viu o absurdo de confortar quem vencera o embate entre os dois, a parte vitoriosa, a mulher que o abandonara para crescer na vida. Ele era, ali naquela mesa, o derrotado. Ao fim de alguns segundos, ela já se recuperara. Os olhos verdes estavam levemente avermelhados. E só.
“Não sei se isso tem importância, mas eu só comecei a namorar o Miguel depois que deixei você. Enquanto nós estávamos juntos, sempre fui fiel.”
Fiel. Que palavra mais ridícula, pensou Fabio. Ninguém é fiel a ninguém. As pessoas só são fiéis a si próprias. Às vezes, nem a elas mesmas. Fabio achou pelo tom de voz de Lenira que ela pronunciara a palavra fiel como se julgasse merecer uma condecoração.
“É verdade: nunca dormi com ninguém quando estávamos juntos. Eu… eu simplesmente não tinha a menor vontade.”
Era a Lenira de sempre, pensou Fabio. Usava “dormir” como sinônimo de copular. Podia ser pior, ele sabia. Lenira podia preferir “fazer amor”. Falava de Miguel como se fosse um velho conhecido de Fabio.
“Não podia terminar bem. Você parecia não gostar mais de nada, só de ler Machado de Assis e escutar o Nirvana. Eu tinha uma festa, você não ia. Queria ver um filme, você não ia. Pareço estar ouvindo o que você dizia de cinema. Cultura de preguiçoso. Quem não tem preguiça lê livro. Quem tem vê filmes. Você sempre foi tão cínico. Mesmo agora. Eu falo essas coisas todas, tão importantes para mim, tão duras que levei cinco anos para conseguir dizer, e você me olha impassível, com um sorriso pregado no canto dos lábios. Eu nunca atingi você, não é, Fabio? Me pergunto quantos dias você demorou para perceber que eu tinha ido embora.”
Fabio achou que não era o momento de falar no quanto sofrera. Não ia falar no dia em que pegara uma tesoura e, num acesso de fúria, rasgara as fotos dos dois. Como sempre, quem precisava falar era ela, não ele. Reparou que ela não tocara na comida, uma salada de salmão acompanhada de água sem gás. Tudo bem, Lenira não fora ali para comer.
“Ainda no dia anterior eu esperei alguma coisa, um gesto, um sinal que mostrasse que eu tinha alguma importância pra você. Que você me achava tão importante quanto My Girl e um Capitão de Voluntários. Mas nada. Você tinha se refugiado num mundo no qual eu não conseguia entrar.”
Fabio demorara algum tempo para entender que essa indiferença fingida era apenas uma autodefesa errada e inútil. Sabia que perderia Lenira, algum dia, para alguém mais adequado que ele. Um homem que a levasse para dançar, para viajar, que a fizesse sorrir. Alguém como Miguel. Fabio sempre olhara Lenira de cima para baixo, uma perspectiva que só poderia mesmo levar o casal ao colapso. Lenira e Miguel parecem feitos um para o outro. Dois vitoriosos, que se olhavam de igual para igual. Pareciam tão felizes, os dois, nas fotos das colunas sociais. Por saber que a perderia, Fabio construíra um mundo ao qual Lenira não pertencia. Uma tolice, sabia agora, mas a vida é exatamente isso, uma sucessão interminável de tolices. E a gente só percebe que cometeu um erro grave num relacionamento depois que já é muito tarde para corrigi-lo.
“Fabio, Fabio. Você não vai falar nada?”
Fabio pensou em falar algo, mas se calou. Não falara nada quando falar poderia ter feito alguma diferença. Agora não fazia sentido falar nada.
“Fabio, Fabio, eu …”
Fabio percebeu que Lenira estava perto de perder o controle. Mas nunca houve nada que ele pudesse fazer a esse respeito.
“Eu te detesto, te detesto, te detesto. Você arruinou minha vida. Você me tornou uma mulher amarga, uma mulher que não consegue sonhar.”
Ele pensava que Miguel e ela fossem felizes. Era o que parecia nas colunas sociais.
“Você dizia que gente que não leu Sthendal não sabe nada da vida. Sthendal, não é isso? Não me lembro de ter passado uma noite só com você sem que você acendesse o abajur para ler um livro e …”
Lenira fez uma pausa breve, para recuperar ao mesmo tempo o fôlego e a raiva.
“… não consegui deixar de reparar que o Miguel nunca lia um livro antes de dormir. Mas ele é bom de sexo, entendeu? Muito bom, Fabio. Fabio, Fabio, eu te detesto.”
Ela foi subindo o tom de voz. Naquela altura todo o restaurante sabia que ela o detestava, e que Miguel era bom de cama.
Lenira levantou-se subitamente e foi embora. Fabio ficou na mesa. Admirou, uma última vez, o olhar torto e sublime de Lenira.
Depois olhou para o casalzinho que estava na mesma mesa em que eles gostavam de se acomodar.
Estavam tão apaixonados.
Teve pena dos dois.