Publicado originalmente no Sul 21.
O resultado das recentes eleições na Argentina e na Bolívia e a rebelião popular que explodiu no Chile contra as políticas neoliberais aplicadas no país há algumas décadas fizeram o tabuleiro político e geopolítico da região se mover. Após acumular pesadas derrotas nos últimos anos, especialmente no Brasil e na Argentina, a esquerda da região vê o renascimento de possibilidades que pareciam soterradas pelos escombros deixados pelo avanço do conservadorismo na região, em especial pela eleição de Jair Bolsonaro no Brasil. O movimento tectônico foi acusado pela própria direita. Na semana passada, Eduardo Bolsonaro, um dos filhos do presidente, ameaçou a esquerda brasileira de reeditar políticas como a do Ato Institucional n.5 (AI-5), que marcou o recrudescimento da repressão, da censura e da tortura na ditadura pós-64, caso ela pretenda “seguir o exemplo chileno”.
Acuado por novas denúncias envolvendo o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL/RJ), o governo Bolsonaro, seja pela voz do presidente ou de um seus filhos, vem elevando o tom de suas manifestações favoráveis a medidas autoritárias que nem mais buscam algum disfarce. A raiva do discurso da extrema-direita brasileira só cresceu a partir dos recentes acontecimentos na Argentina e no Chile. “O encontro entre os surtos autoritários do governo Bolsonaro e a nova onda política e social na América Latina, representada pelas vitórias eleitorais na Argentina e na Bolívia e pela rebelião popular no Chile, indica que o que está em curso nesta etapa é a disputa por um cenário maior. Estamos sendo contemporâneos dos primeiros e valiosíssimos sinais de uma nova virada política na América Latina”, avalia Flavio Koutzii, ex-deputado estadual, pelo PT, ex-chefe da Casa Civil do Governo Olívio Dutra e ex-preso político na Argentina, onde participou da luta armada contra a ditadura.
Koutzii acompanha há algumas décadas a política brasileira e argentina em especial, seja como militante político, seja como um analista que não costuma deixar suas preferências políticas iludir seus prognósticos. Em entrevista ao Sul21, ele atualiza um balanço sobre a atual conjuntura política, à luz dos mais recentes acontecimentos no Brasil e na América do Sul. E a balança da análise pende para um discreto otimismo: “Eu tenho estado bastante cético a respeito dos cenários de futuro, pois perdemos muito e tivemos uma grande regressão no código de valores. Estamos assistindo, de certa maneira, a uma revalorização da política, a uma volta da política. No centro do desenlace dos processos que vemos hoje em países como a Argentina ou o Chile está a política em seu sentido social e não o perigo do Satanás”.
Sul21: Há um certo consenso já em relação à interpretação de afirmações como essa feita por Eduardo Bolsonaro sobre o AI-5. Segundo essa leitura, esse tipo de afirmação surge, como uma espécie de manobra diversionista, toda vez que Bolsonaro ou um de seus filhos está envolvido em alguma denúncia ou problema mais grave. Na tua avaliação, essa defesa de uma possível reedição do AI-5 deve ser lida basicamente como uma manobra diversionista ou devemos tomá-la como algo mais grave, indicador de uma potencial escalada autoritária?
Flavio Koutzii: O mais inquietante desse episódio não é o aspecto tático diversionista como muitos de nós temos julgado vários movimentos anteriores dessa dimensão, graves, provocantes e absurdos. Isso existe, mas prefiro prestar atenção em outra coisa neste caso, a hipótese de que estamos frente a uma escalada cada vez mais radicalizada e ameaçadora do ponto de vista dos símbolos que eles escolhem para demarcá-la e publicizá-la.
Uma parte da sociedade brasileira, a parte que está prestando atenção, ficou profundamente inquieta com essa afirmação de Eduardo Bolsonaro, o que é positivo, na medida em que houve uma reação rápida de algumas instituições. Isso parece confirmar também o sinal da escalada que mencionei. A opinião pública ilustrada da direita e a opinião pública de algumas instituições que se degradaram profundamente de vez em quando levantam o braço para dizer “isso não”, como fizeram neste caso.
Eu queria agregar um fato da conjuntura bem recente que me parece caber como uma luva neste tema. Estou entre aqueles que, pouco a pouco, começou a dizer que deveríamos prestar atenção e não ficar nos escandalizando a cada duas semanas com episódios desse tipo, que não era o lado caricatural que deveria nos preocupar, mas sim o lado agudo do conteúdo que hipotnizava um pouco a opinião crítica democrática do campo progressista, desviando a atenção do que era principal. Já se falava isso sobre o modus operandi adotado pelo Trump nos Estados Unidos e as similitudes foram sendo percebidas. Nos preveníamos mutuamente dizendo algo como: “não entra nessa, o importante é isso aqui. O cara está puxando pra ti olhar pra lá, mas ele está entrando por aqui”.
A minha impressão recente é que estamos frente a uma alteração da conjuntura que eu mal pressentira que poderia acontecer. Começamos a ver uma reação à grande regressão civilizatória e antidemocrática, aos ataques à cultura e à inteligência. Houve um período bem recente onde era necessário explicar que o que estávamos vivendo no Brasil não era um fenômeno exclusivamente verde-amarelo, mas fazia parte de um processo que estava acontecendo em escala mundial. Era possível encontrar traços homogêneos entre o que acontecia no Brasil, nos Estados Unidos, na Hungria, na Itália e em outros países. Não havia, propriamente, uma especificidade brasileira. Ao consolidar esse tipo de convicção e entendimento, prestava-se um serviço para afastar uma certa folclorização por termos como presidente uma personalidade aberrante com traços psicóticos, uma espécie de serial killer da democracia, da cultura e de valores básicos que nos são caros. Isso respondia, na verdade, a fenômenos como, por exemplo, a forma como se organiza hoje o capital financeiro e a reestruturação de seu poder em escala mundial.
Clichês rápidos não funcionam para entender essa realidade. Olhares atentos e mentes abertas são uma pré-condição para a compreensão desses processos. Neste momento em que estamos conversando há sinais muito mais positivos e indicadores de uma nova onda. O bolsonarismo está exercendo o comando do país do modo que já conhecemos, com picos de boçalidade impune, no momento em que vemos se erguer uma nova onda na região. Em um de seus últimos livros, Emir Sader fala que tivemos uma década de governos democráticos e populares, de 2000 a 2010, seguida por uma década de reação conservadora que deslocou ou derrubou esses governos. E agora parece que temos uma nova onda.
Sul21: Quais seriam exatamente os indicadores dessa nova onda?
Flavio Koutzii: O que está acontecendo no Chile, por exemplo, é mais magnífico do que parece. Se houvesse lá a radioatividade tóxica que a direita conseguiu disseminar no Brasil, não estaria acontecendo o que estamos vendo. Essa nova onda se distingue por manifestações populares em diferentes países, como no Chile, e resultados eleitorais como os que tivemos agora na Argentina, na Bolívia e também no Uruguai, onde há uma disputa em aberto. É uma situação muito diferente daquela de um ano atrás, quando Bolsonaro se elegeu, e também da conjuntura que antecedeu a sua vitória.
Estamos reconstruindo tecidos políticos e tessituras culturais históricas na América Latina. A vitória na Argentina, que me é tão cara, tem uma tessitura peronista. Não é só isso, mas temos aí um pedaço da história argentina que permanece presente. No Brasil, eles querem apagar o Lula da memória do povo brasileiro. O editorial de ontem (31/10) do jornal Zero Hora critica o que chama de “destempero” de Bolsonaro e os ataques contra a Globo e, lá pelas tantas, mais no final, diz que isso faz recordar os governos que o antecederam, numa alusão clara aos governos do PT, especialmente do Lula. Essa frase me parece exemplar. Se eu disser que o editorial é intelectualmente desonesto e historicamente falso, eles vão dizer: ‘Olha aí, o Flavio está confirmando o que estamos dizendo. Ele é quase um Bolsonaro’. Essa postura é de uma canalhice absoluta, porque não é verdade o que está dizendo.
O fato de o campo de esquerda e progressista ter uma percepção analítica crítica sobre o papel da grande imprensa brasileira expressa uma opinião política. Considerando o que Bolsonaro vem fazendo em relação à imprensa, não aconteceu nada parecido em nenhum dos governos do período pós-ditadura. Mas vemos se repetir na imprensa essa analogia totalizante entre Bolsonaro e Lula. Isso mostra que a imprensa, mesmo defendendo valores democráticos, parece estar organizada para seguir sempre batendo em Lula por meio dessa analogia. E isso é falso. Lula pode ter feito algum discurso com veemência, mas jamais perdeu as estribeiras. Suponho que seja possível ainda fazer um discurso com veemência…O que eu quero dizer, para além da minha indignação, é que eles não descuidam. O capital disputa todos os campos, o tempo todo. É o agro que é pop, é a Febraban contratando o Pedro Bial como porta voz e dando conselhos para o cidadão não se endividar demais.
Sul21: A reação contra as declarações de Eduardo Bolsonaro incluiu manifestações de políticos como Rodrigo Maia, presidente da Câmara, e Davi Alcolumbre, que integram o campo à direita no espectro político brasileiro. Praticamente todo o campo de centro e centro-direita repudiou as declarações. Isso indica, na tua avaliação, que Bolsonaro não teria base política para dar um passo como o sugerido pelo filho? Que apoio ele poderia ter para fazer algo como uma reedição do AI-5?
Flavio Koutzii: Eu tenho minhas dúvidas. Bolsonaro não é o Guedes, que garantiu o que eles queriam e promete entregar mais alguma coisa ainda para terminar de destruir o Estado. Então, eles têm um integrante do governo que lhes convém. O sistema financeiro não está interessado em esculhambar mais a situação política e social no país porque isso pode prejudicar os negócios, ainda mais agora que estamos em cima do Natal. Eles mexeram em coisas que, no longo prazo, vão diminuir a capacidade da população de consumir, para usar a linguagem deles. Quanto mais instável ficar, pior será, pois não há o mais remoto sinal de recuperação da economia, o que é um dado essencial dessa conjuntura.
Se não há recuperação da economia no horizonte, qual é o negócio? Pelo lado civil eles têm o Guedes e sua agenda. Ele está aí para liquidar o Estado. E eles têm também uma base social. Se o governo sinalizasse hoje que é preciso “salvar o país”, a sua base social escutaria esse comando. Está plenamente confirmado que Bolsonaro tem um pouco menos de um terço do eleitorado e que uma parte desse terço é fundamentalista. Todo mundo tem experiências empíricas para contar sobre isso. As pessoas têm orgulho da sua burrice, estão satisfeitas com sua ignorância. A regressão civilizatória se mede por isso também. Esse é o significado do “sair do armário”. As pessoas não têm mais problema para defender abertamente coisas como a tortura, por exemplo
E ainda devemos considerar o papel do Exército, cuja cúpula está enterrada até o pescoço neste governo. Os seus reflexos não são apenas os reflexos homogêneos que tínhamos, por exemplo, na época da Lei de Segurança Nacional. Estamos lidando com outra coisa. Não se trata mais de nacionalismo. A cúpula das Forças Armadas é uma cúpula de traição ao país, o que é a pior coisa que pode se dizer a um militar. Pois ele já rifaram o Brasil que virou um mercado de 1,99. Levaram toda a rede de distribuição de petróleo, que é o filé desse negócio. Não é a extração, que é caríssima, mas a distribuição. O pré-sal está indo embora e a lista de alienação do patrimônio brasileiro é enorme. E os militares não dão um pio, sendo, portanto, absolutamente coniventes com isso.
Então, o estado das artes com o Exército e o fato de que ele tem uma base de massas irredutível indicam que o perigo de uma aceleração autoritária existe e é real. Por outro lado, não acho que isso seja interessante para o sistema financeiro. No passado falava-se muito do custo país, um jargão da direita econômico-financeira. Gostaria de saber quando é que eles vão começar a falar do custo Bolsonaro. Só o que ele está fazendo em termos de diplomacia internacional já sinaliza que esse custo existe e não é pequeno. Várias vezes ele teve que voltar atrás porque alguém explicou para ele que o país estava correndo o risco de perder determinados mercados. Os recentes ataques que ele fez a Argentina são um exemplo disso. Cada vez que Bolsonaro aparece em uma cena pública internacional, ou está comendo um Miojo, ou está cometendo uma estupidez do ponto de vista dos interesses econômicos e diplomáticos do Brasil ou está num canto, solitário e desprezado.
Voltando ao ponto principal, penso que o bolsonarismo é uma experiência que ficará arraigada na consciência e na sensibilidade política de um pedaço do povo brasileiro por um tempo que não será breve. Esse pedaço não passa de um terço, mas um terço já é muita gente. Além disso, há outros movimentos em curso, que são mais silenciosos e simpáticos, como a hipótese crescente da candidatura do Luciano Huck, um rapaz simpático que, de vez em quando, distribui uma casa em seu programa de TV. Os valores próprios das ideias políticas, não precisa ser as nossas, estão fora desse tipo de movimento. Luciano Huck é uma metáfora ambulante da destruição do país. Já Moro é a possibilidade de “recambio” mesmo, conforme indicam várias pesquisas consideradas sérias, embora sua imagem já esteja também sofrendo uma certa erosão. Moro é a grande carta que eles têm, muito antes de acelerar um golpe ou algo do tipo.
Sul21: Parece haver uma relação entre essa escalada de ameaças autoritárias e os novos ventos políticos que começam a soprar na região. É isso mesmo?
Flavio Koutzii: O encontro entre os surtos autoritários do governo Bolsonaro e a nova onda política e social na América Latina, representada pelas vitórias eleitorais na Argentina e na Bolívia e pela rebelião popular no Chile, indica que o que está em curso nesta etapa é a disputa por um cenário maior. Estamos sendo contemporâneos dos primeiros e valiosíssimos sinais de uma nova virada política na América Latina. Bolsonaro e os seus estão atuando como se tivessem ganho um espaço eterno e sem limites. Mas a minha intuição é que isso está passando do ponto. O Brasil deixou de viver uma democracia porque acabou o estado de direito e a possibilidade de a sociedade escolher livremente seu governante.
Neste sentido, a vitória na Argentina é a vitória das vitórias. Os mecanismos de difusão de fake news, que vimos aqui, foram para lá. A centralidade do tema da corrupção contra os Kirchner também existiu. Mas eles ganharam a eleição no primeiro turno. Estamos assistindo, de certa maneira, a uma revalorização da política, a uma volta da política, o que ficou expresso no movimento genial feito pela Cristina de se colocar como vice e também nas falas milimétricas, prudentes e precisas dela e de Alberto Fernández no domingo à noite, após a confirmação da vitória. Na Bolívia e no Chile também estamos vendo uma revalorização da política. Nada mais político do que o sentido das mobilizações no Chile que começam pelo tema da passagem, mas se ampliam rapidamente para o conjunto das políticas de um governo neoliberal raiz.
No centro do desenlace de todos esses processos está a política em seu sentido social e não o perigo do Satanás levantado por igrejas pentecostais e outras organizações desse tipo. O que temos, portanto, é um quadro muito interessante do ponto de vista do resgate da política e de valores que foram destruídos no Brasil. Há uma nova combinação de circunstâncias e forças. Eu tenho estado bastante cético a respeito dos cenários de futuro, pois perdemos muito e tivemos uma grande regressão no código de valores. Não estou falando de valores da esquerda, mas de valores cristãos mesmo. Há reverberações de valores elementares, como o da solidariedade, que esses recentes episódios latino-americanos estão mostrando. Enquanto eles maximalizam sua boçalidade, emergem no grande espaço latino-americano valores, memórias e vitórias que combatem uma espécie de fatalidade que paira sobre nós. A balança mudou na America Latina e isso não é pouca coisa.