Publicado originalmente em Come Ananás
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A grande questão da conta matemática 107-56=51, os 51 imóveis dos Bolsonaro comprados com dinheiro vivo identificados pelos repórteres Thiago Herdy e Juliana Dal Piva, é precisamente um número, o mais importante de todos, que não entrou na equação, porque não foi registrado em cartório: quantos prédios ilegais da milícia a rachadinha de Flávio Bolsonaro financiou, com “moeda corrente nacional”, nas favelas de Rio das Pedras e Muzema, na Zona Oeste do Rio de Janeiro?
Em abril de 2020, o Intercept Brasil publicou informações sigilosas de um inquérito do Ministério Público do Rio segundo o qual Flávio Bolsonaro lucrou com a construção ilegal de prédios erguidos pela milícia em áreas griladas em Rio das Pedras e na Muzema e financiados com dinheiro das rachadinhas de Flávio na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj).
Flávio rico
É saber corrente carioca que a grilagem de terras se tornou uma atividade das mais rentáveis para as milícias do Rio. Além do lucro com a venda de imóveis construídos em áreas griladas, outra serventia deste empreendedorismo não apoiado pelo Sebrae é a lavagem de dinheiro.
Segundo o MPRJ, o esquema de Flávio Bolsonaro neste filo criminoso era gerenciado pelo infalível Fabricio Queiroz e envolvia os chefes milicianos Adriano da Nóbrega e Ronald Pereira. Todos os três são ex-policiais militares. Todos os três são ligados à família Bolsonaro. Todos os três são ligados especialmente a Flávio.
Entre 2003 e 2004, tanto Adriano da Nóbrega quando Ronald Pereira foram homenageados na Alerj – um com a Medalha Tiradentes, outro com moção honrosa – por recomendação do então deputado estadual Flávio Bolsonaro. Entre 2015 e 2017, período de salto patrimonial de Flávio, a mãe e a esposa de Adriano ocupavam cargos comissionados no gabinete do primogênito de Jair Bolsonaro na Alerj.
Segundo a investigação do MPRJ à qual a reportagem do Intercept teve acesso, um quinhão da rachadinha com os salários do pessoal lotado no gabinete de Flávio era repassado para Adriano da Nóbrega aplicar, digamos, em real state miliciano: “o lucro com a construção e venda dos prédios seria dividido com Flávio Bolsonaro, segundo as investigações, por ser o financiador do esquema usando dinheiro público”.
Dinheiro vivo
Tudo com dinheiro público transformado em dinheiro vivo, naturalmente. “Qual é o problema?”, diria Jair Bolsonaro.
A descoberta do esquema de construção irregular em terrenos grilados e irrigado com dinheiro da rachadinha de Flávio Bolsonaro na Alerj foi feita em meio aos desdobramentos das investigações sobre os assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes.
Diz o Intercept:
“A ligação do ex-capitão com as pequenas empreiteiras envolvidas no boom da verticalização em Rio das Pedras e Muzema foi levantada em meio à investigação sobre as execuções da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, na noite de 14 de março de 2018. Foi a partir das quebras de sigilos telefônicos e telemáticos dos integrantes do Escritório do Crime que os promotores descobriram que o grupo paramilitar havia evoluído da grilagem de terras à construção civil, erguendo prédios irregulares na região e, assim, multiplicando seus lucros”.
Ainda segundo o Intercept, a famosa frase “O MP está preparando uma pica do tamanho de um cometa para empurrar na gente”, dita em 2019 por Queiroz em uma conversa de Whatsapp com um interlocutor não identificado, seria uma referência justamente à investigação sobre o uso de dinheiro público desviado no esquema das rachadinhas de Flávio Bolsonaro para financiar o boom de construções ilegais em terras griladas em Rio das Pedras e na Muzema.
Quando Adriano foi morto pela polícia da Bahia, em 2020, no sítio de um vereador bolsonarista e com pinta de queima de arquivo, o miliciano estava sendo procurado pelos crimes de receptação de mercadorias roubadas e cobrança irregular de taxas à população, mas também por grilagem de terras.
Em janeiro de 2019, logo após o fim da intervenção federal no Rio de Janeiro, Ronald Pereira foi preso sob suspeita de participação no assassinato de Marielle. Ronald vinha sendo investigado por crimes como agiotagem e, sempre, grilagem de terras para os empreendimentos da máfia carioca no ramo imobiliário.
A família Bolsonaro vem valendo-se, com êxito, de todos os meios que o poder lhe proporciona para sabotar, embaralhar, obstruir as investigações sobre as rachadinhas de Flávio Bolsonaro na Alerj. O esforço para proteger Flávio teria sido o motivo do divórcio entre o bolsonarismo e o lavajatismo, com a saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça sob pressões de Jair Bolsonaro para a troca de comando da Polícia Federal no Rio de Janeiro.
Em maio deste ano, a denúncia do MPRJ contra Flávio Bolsonaro foi arquivada pelo Tribunal de Justiça do Rio, após a anulação de provas pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal.
Marielle morta
Foi na região central da capital fluminense e na vigência da intervenção federal no Rio de Janeiro que Marielle Franco morreu com quatro balaços na cabeça disparados pelo miliciano Ronnie Lessa, que é apontado como assassino de aluguel do Escritório do Crime e era vizinho de Jair Bolsonaro em um condomínio na Barra da Tijuca, tendo mesmo saído de lá, do Vivendas da Barra, na companhia de Élcio de Queiroz, para cometer o assassinato.
No dia 11 de janeiro de 2019, logo após o fim da intervenção, que foi chefiada pelo general Walter Braga Netto, saiu uma inacreditável entrevista de Braga Netto à revista Veja.
Naquela entrevista, quando perguntado sobre o motivo do assassinato de Marielle, se o crime teria sido uma tentativa de desmoralizar a intervenção, Braga Netto afirmou que não, e emendou: “aquilo [o assassinato] foi uma má avaliação deles. Avaliaram mal, acharam que ela é um perigo maior do que o que ela era”.
“Um perigo para quem?”, perguntou, estupefato, o repórter Leandro Resende, da Veja.
“Não vou entrar nesse mérito”, respondeu Braga Netto, para em seguida entrar em contradição ao tentar sair pela tangente, dizendo algo sobre que “acharam, de repente, que o estado, por estar sob intervenção, tinha desorganizado as polícias…”.
“Um perigo para quem?”. Braga Netto não respondeu, mas o também general Richard Fernandez Nunes, braço direito de Braga Netto na intervenção, já havia respondido a esta pergunta, menos de um mês antes, também numa entrevista à imprensa. Segundo o general, Marielle foi morta porque foi percebida como “uma ameaça a negócios de grilagem de terras na Zona Oeste do Rio”.
Come Ananás reproduz abaixo um trecho, o trecho sobre o assassinato de Marielle Franco, da entrevista do general Richard Nunes ao repórter Marcelo Godoy publicada no jornal O Estado de S.Paulo no dia 14 de dezembro de 2018.
“General, o caso Marielle foi uma afronta à intervenção?
Não foi. O que entendo hoje é que os criminosos superestimaram o papel que a vereadora poderia desempenhar. Era um crime que já estava sendo planejado desde o final de 2017, antes da intervenção. Isso aí nós temos já; está claro na investigação. O que aconteceu foi o contrário. Os criminosos se deram conta da dimensão que tomou o crime por ter sido cometido na intervenção. Não podemos entender como afronta porque eu assumi em 27 de fevereiro. E dei posse ao comandante da PM no dia 14 de março, que foi o dia do crime. Estávamos iniciando um trabalho. E hoje com os dados de que dispomos de 19 volumes de investigação fica claro que se superestimou o papel que ela desempenhava.
Que papel?
Ela estava lidando em determinada área do Rio controlada por milicianos, onde interesses econômicos de toda ordem são colocados em jogo. No momento em que determinada liderança política, membro do legislativo, começa a questionar as relações que se estabelecem naquela comunidade, afeta os interesses daqueles grupos criminosos. É nesse ponto que a gente precisa chegar, provar essa tese, que está muito sólida. O que leva ao assassinato da vereadora e do motorista é essa percepção de que ela colocaria em risco naquelas áreas os interesses desses grupos criminosos.
Como ela colocaria em risco?
A milícia atua muito em cima da posse de terra e assim faz a exploração de todos os recursos. E há no Rio, na área oeste, na baixada de Jacarepaguá problemas graves de loteamento, de ocupação de terras. Essas áreas são complicadas.
A atuação dela seria de fazer…
Uma conscientização daquelas pessoas sobre a posse da terra. Isso causou instabilidade e é por aí que nós estamos caminhando. Mais do que isso eu não posso dizer.”
Um esbarrão na primeira página
A entrevista de Richard Nunes ao Estadão foi manchete do jornal naquele 14 de dezembro de 2018. Na capa daquela edição do jornal, ao lado da manchete “Milicianos mataram Marielle por causa de terras, diz general”, havia uma chamada para uma matéria sobre o “incômodo” de militares com o caso Coaf, que escancarou justa e precisamente o esquema da rachadinha de Flávio Bolsonaro na Alerj e tornou nacionalmente famosa a figura de Fabricio Queiroz.
Aquele acaso na capa do Estadão, porém, foi o mais perto que a imprensa brasileira chegou, até hoje, de correr atrás dos fartos indícios de correlação entre o teor do inquérito do MPRJ, revelado pelo Intercept mais recentemente, ligando um senador e filho do presidente da República aos negócios miliciano-imobiliários da Zona Oeste do Rio, e as declarações do general Richard Nunes, lá atrás, dizendo que os negócios miliciano-imobiliários da Zona Oeste do Rio estariam na raiz da decisão de mandar matar Marielle Franco.
Hoje em dia
“Mais do que isso eu não posso dizer”, trancou-se Richard Nunes no fim de 2018, na entrevista ao Estadão, referindo-se às motivações e aos mandantes do assassinato de Marielle Franco. De fato, até hoje mais não disse, este general da intervenção que chegou a ser cotado para assumir o comando do Exército em substituição ao general Paulo Sergio Nogueira, quando Paulo Sérgio sucedeu a Braga Netto no Ministério da Defesa para iniciar uma guerra contra o sistema brasileiro de votação eletrônica.
Hoje, Richard Nunes é o chefe do Comando Militar do Nordeste. Braga Netto, que também nunca mais tocou no assunto “eles avaliaram mal”, e Flávio Bolsonaro são, respectivamente, candidato a vice e coordenador da campanha de Jair Bolsonaro, padroeiro tanto de milicianos quanto de grileiros deste país e que, não obstante, é candidato à reeleição a nada mais, nada menos que a presidência da República.
Fabricio Queiroz é candidato a deputado federal e adotou o sugestivo lema de campanha “lealdade de verdade”.
Marielle Franco está morta. “Eles avaliaram mal” e mandaram a vereadora do Psol para a cova. Marielle não descansa em paz, porque, afinal, quem mandou matar Marielle?
O apertador de gatilho Ronnie Lessa está preso e vai a júri popular. No ano passado, a Delegacia de Combate ao Crime Organizado e a Lavagem de Dinheiro, da Polícia Civil do Rio, e promotores do MPRJ descobriram que entre 2014 e 2019 passaram pelas contas bancárias de Lessa algo em torno de R$ 1,6 milhão em depósitos em espécie, cash.
Um desses depósitos chamou a atenção dos policiais e promotores: R$ 100 mil metidos numa conta de Ronnie Lessa sete meses após o duplo assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes. Não se sabe quem fez o depósito, nem o porquê. Sabe-se apenas que foi mais um depósito feito na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro com dinheiro vivo.
Sempre com dinheiro vivo.