Leonardo Sakamoto
O céu alaranjado tomando conta de cidades, linhas de fogo gigantes travando rodovias, falta de água para consumo humano ou animal, rajadas de cinzas invadindo casas e muita dificuldade de respirar mostrou a São Paulo, nos últimos dias, um vislumbre de seu futuro. Sim, o pujante estado pode virar um plágio mal ajambrado de Mad Max, a série de filmes pós-apocalíptica, com as mudanças climáticas.
Os paulistas dependem da Amazônia para sobreviver, literalmente. Na América do Sul, na África e na Austrália, o Trópico de Capricórnio corta desertos. Por aqui, graças à umidade que vem da nossa maior floresta, bate na Cordilheira do Andes e desce para o Sudeste e o Sul é que temos vida.
Quando a Amazônia vive seca, a gente se lasca junto. Seja nas mãos de criminosos, seja por acidente, o fogo encontra por aqui um ambiente propício para se alastrar. Se a floresta for para o saco, São Paulo vai junto. Simples assim. Tchau, tchau agropecuária e indústrias. O comércio, por outro lado, sempre vai ter, até porque vamos precisar de quem venda máscaras e remédios.
O El Niño acabou, mas seus efeitos continuam, potencializados pelas mudanças climáticas. Não é que nunca vivemos um cenário Mad Max antes, mas eventos extremos se tornaram mais frequentes por nossa culpa. Se você discorda disso, faz parte dos 20% negacionistas, segundo pesquisa Datafolha do mês passado, que veem em tudo isso uma oscilação natural. Uma minoria, uma vez que 77% creem que mudanças climáticas são causadas principalmente por ação humana.
Quando cientistas alertaram que a subida da temperatura média do planeta já estava levando ao aumento na frequência de eventos climáticos extremos, os negacionistas, orgulhosos de sua burrice, questionavam nas redes “este inverno fez mais frio, cadê o aquecimento”?
Agora, todos assistem assustados o clima pintar cenários apocalípticos. O que muitos chamam de inferno é apenas um aperitivo de nosso novo normal. O fogo que consome áreas de São Paulo toca a mesma trombeta da água que cobriu o Rio Grande do Sul e matou dezenas, anunciando que um novo clima veio para ficar.
Qualquer alce que caiu em um buraco na Sibéria após o colapso do permafrost local, qualquer urso polar deprimido por estar à deriva em uma placa de gelo que se soltou no Ártico, qualquer cavalo caramelo ilhado em um telhado nas enchentes no Rio Grande do Sul ou ainda qualquer tamanduá-bandeira cercado pelas chamas de uma queimada descontrolada na Amazônia é capaz de dizer que, infelizmente, já ajustamos o termostato do planeta para a posição “gratinar os idiotas”. E que, neste momento, diante da falta de medidas eficazes tomadas por governos para reduzir as emissões de carbono, estamos nos esforçando apenas para que o assado fique pronto antes da hora.
As mudanças climáticas em andamento na Terra já são irreversíveis. Nas próximas décadas, teremos milhões de refugiados ambientais por conta da subida no nível dos oceanos e pelos eventos climáticos extremos; fome em grande escala devido à redução e desertificação de áreas de produção e à perda da capacidade pesqueira; aumento na quantidade de pessoas doentes e subnutridas, além de conflitos e guerras em busca de água e de terra para plantar.
Muita gente vai morrer no Brasil e no mundo. E os sobreviventes terão que adaptar sua vida para conviver com um ambiente mais hostil. Os ricos serão terão mais chances, mas não vão passar ilesos. Afinal, o céu laranja de Ribeirão Preto nesta semana cobriu ricos e pobres.
O que não significa que não possamos evitar uma catástrofe ainda maior causadas pelas as mudanças climáticas, reduzindo desmatamento, queimadas, emissão de poluentes, e não podemos adaptar cidades e o campo para esse novo normal.
O mundo tentava manter o aumento da temperatura global em 1,5 graus Celsius até 2100, o que vai ser impossível dada a nossa incompetência. Podemos chegar a 3, 4 ou 5 graus a mais. De acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), com um limite de aumento de 2 graus Celsius na temperatura global, o nível do mar vai subir quase meio metro. Adeus, cidades costeiras.
Fazer com que pessoas acreditem que tudo está mudando sem que sintam isso na pele é difícil. Por isso, que esses terríveis eventos extremos em São Paulo, no Rio Grande do Sul, no Brasil e no mundo têm a capacidade de mobilizar por mudanças. Talvez o esperado investimento para a redução de emissões e a mudança no comportamento dos cidadãos, bem como o desenvolvimento de tecnologias mais baratas para sequestrar carbono da atmosfera, virão quando houver pânico diante dos tais eventos.
O mundo, ainda em choque com os horrores da Segunda Guerra Mundial, proclamou, três anos após o fim do conflito, a Declaração Universal dos Direitos Humanos – nosso documento mais importante. Infelizmente, é depois de andar pelo vale da sombra que estamos mais abertos para olhar o futuro e desejar que o sofrimento igual nunca mais se repita. Infelizmente, porque há inocentes (desde os que são muito novos ou que nem nasceram até os que sempre estiveram alijados do consumo por serem pobres demais) que não são sócios da tragédia ambiental como a maioria de nós.
A questão não é mais “evitar” mudanças climáticas e sim “reduzir a tragédia que já começou”. O mundo precisa entender que já está no fundo poço. A questão é que, no fundo, há um alçapão.
Vamos sediar a COP-30, a Conferência das Nações Unidas para Mudanças Climáticas, em Belém, no ano que vem. Temos a chance de ajudar a fechar o abismo entre a promessa vazia de metas grandiosas e a prática cotidiana de destruição da Amazônia, do Cerrado, do Pantanal, da Mata Atlântica, impulsionada por setores criminosos do agronegócio e do extrativismo, pela boiada de projetos que facilitam a grilagem e a destruição do meio ambiente sob a batuta do Congresso Nacional, pelo desmonte da fiscalização por parte do governo anterior e que está sendo reconstruída agora a muito custo e até pelo discurso de “progresso”, com o usado para justificar a exploração de petróleo na costa amazônica do Amapá.
Não acreditem em quem fala que estamos em contagem regressiva: já adentramos uma nova era de extinção em massa de uma série de espécies. Talvez menos a nossa. Pois, ao final, os ricos comprarão sua segurança e herdarão a Terra, desta vez mais árida e violenta. Sem Tina Turner (para os mais velhos), nem Anya Taylor-Joy e Charlize Theron, num plágio de Mad Max — que virá não como tragédia, mas como farsa.
Originalmente publicado no Uol