Folha dá espaço a criacionistas: agora só falta promover debate sobre a terra plana ou ETs. Por Luís Felipe Miguel

Atualizado em 8 de fevereiro de 2020 às 11:49

PUBLICADO ORIGINALMENTE NO FACEBOOK DO AUTOR

A Folha dedica a página 3 de hoje a um debate sobre a legitimidade do criacionismo – na sua versão modernizada, batizada de “design inteligente”.

O simples fato de dar espaço para essa controvérsia já alinha o jornal com um dos lados. Afinal, o objetivo inicial dos criacionistas é serem aceitos como interlocutores.

Não por acaso, o principal ponto do defensor do criacionismo é que os biólogos profissionais preferem “desqualificar os adversários” em vez de “refutar suas teses”. Em suma: fogem do debate.

Grossa mentira.

A ciência exige controvérsia franca e os consensos que constrói sempre podem ser desafiados. Mas isso não quer dizer que a qualquer momento qualquer um pode voltar com uma tese desacreditada e obrigar todo mundo a se dedicar novamente a refutá-la.

Criacionismo. Terra plana. Geocentrismo. Flogisto. Nazismo de esquerda. Na ausência de alguma descoberta extraordinária, é bastante razoável deixar essas ideias de lado, não perder tempo com elas.

Ainda assim, por causa do peso que essa mistificação ganhou ao se associar à extrema-direita política, a refutação do “design inteligente” foi feita centenas, milhares de vezes.

Um bom exemplo, acessível para leigos, é o livro A escalada do monte improvável, de Richard Dawkins.

Um exemplo que é discutido lá é o olho, esta “maravilha” que não poderia ser fruto da “evolução cega”. Pois sabe-se que olhos se desenvolveram de muitas maneiras diferentes no reino animal, mostrando que há um ganho evolutivo associado; e o mecanismo evolutivo já foi descrito, uma vez que mesmo células grosseiras capazes apenas de distinguir luz de ausência de luz já fornecem vantagens na “corrida armamentista” entre predadores e presas, pondo em marcha a seleção natural.

Em especial, se nosso olho fosse fruto de um design, ele certamente não seria inteligente. Temos um ponto cego bem no meio do nosso campo de visão, no local onde o nervo ótico passa através da retina para chegar ao cérebro – que corrige constantemente a informação visual, fazendo com que nós em geral não percebamos o ponto cego. Qualquer primeiranista de engenharia desenharia o percurso do nervo ótico evitando esse problema…

Em vez de seguir o caminho mais fácil e alimentar a falsa polêmica, reconhecendo os criacionistas como interlocutores válidos, a imprensa poderia contribuir para a disseminação da informação científica e o combate ao obscurantismo.