Por Nara Lacerda
Mulheres, pessoas negras, famílias que convivem com o desemprego e de menor poder aquisitivo são as maiores vítimas da insegurança alimentar (IA) no universo de mais de 33 milhões de pessoas que convivem com essa realidade no Brasil. Em alguns cenários nem mesmo anos a mais de educação formal garantem maior proteção contra a fome.
As conclusões são do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (VIGISAN), com dados de novembro de 2021 a abril de 2022. O estudo teve os primeiros resultados divulgados em junho do ano passado e, agora, traz recortes de raça e gênero.
“O racismo no Brasil não está apenas nos xingamentos desumanos e ofensas contra as pessoas. Ele está expresso também em não ter compromisso, não entender, não buscar apoiar políticas que possam resolver esse problema, que façam com que as pessoas negras sejam incluídas na sociedade”, aponta Catia Maia diretora executiva da Oxfam Brasil.
Segundo a pesquisa, 20,6% das famílias chefiadas por pessoas autodeclaradas pardas e pretas sofriam com a fome no período observado. Isso significa que um em cada cinco grupos familiares desse conjunto vivia cotidianamente sem acesso a alimentação de qualidade, com incertezas sobre a garantia das refeições diárias e até mesmo totalmente sem alimentos à mesa.
Quando o dado é colocado lado a lado com as observações sobre famílias chefiadas por pessoas brancas, a desigualdade fica explícita. O índice foi de 10,6%, metade do que foi levantado entre pessoas pretas. As mulheres negras apresentaram situação ainda mais frágil; 22% dos lares em que elas estão à frente convivem com a fome. No caso das mulheres brancas o índice é de 13,5%.
A segurança alimentar (SA) foi maior nos lares chefiados por pessoas brancas, mais de 58% no caso dos homens e 47,5% para as mulheres. Por outro lado, a IA moderada e grave foi mais frequente em domicílios que tinham pessoas negras como referência.
“Se considerarmos as formas mais severas da IA juntas, ou seja, a IA moderada + grave, encontramos que 4 em cada 10 lares chefiados por mulheres negras apresentavam privação de acesso aos alimentos e, em dois destes, seus moradores se encontravam em situação de fome”, diz o estudo.
A pesquisadora da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN) e professora do Instituto de Nutrição da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rosana Sales Costa, afirma que o inquérito é uma base para a construção de soluções.
“Procuramos explorar recortes que estão relacionados à base da desigualdade social no nosso país. Exatamente para poder entender o que pode ser feito a partir dessas informações, como uma forma de reduzir a desigualdade especificamente para a população preta e para as mulheres. Estamos tratando do racismo e do sexismo estruturais do nosso país.”
Trabalho e educação
A VIGISAN mostra também que quem tinha menor escolaridade, atuava no trabalho informal ou não tinha emprego corria mais riscos de conviver com a fome. Nas famílias chefiadas por pessoas com carteira assinada, autônomas e com renda familiar mensal superior a 1 salário-mínimo, a segurança alimentar esteve presente em 80% dos lares autodeclarados brancos e em 73% dos negros.
Novamente, as análises reafirmam que as mulheres negras são as vítimas mais frequentes. Em situações de desemprego, 39,5% dos domicílios chefiados por elas conviviam com a fome. O inquérito destaca, no entanto, “que a situação de desemprego impacta todos os grupos sociais analisados; sendo as prevalências de IA grave em domicílios chefiados por mulheres brancas (36,2%), homens negros (34,3%) e homens brancos (25,3%).”
O recorte da escolaridade mostra que as famílias chefiadas por mulheres negras não estão mais seguras em relação à fome nem quando têm maior acesso à educação. Mesmo quando têm oito anos ou mais de estudo, elas estão mais sujeitas à insegurança alimentar que todos os outros grupos pesquisados.
Um terço das famílias que têm como figura de referência uma mulher negra com esse tempo de formação convive com o problema em graus moderado ou grave. Para os homens negros o índice é de 21,3% de homens negros, mulheres brancas 17,8% e homens brancos 9,8%.
O inquérito traz ainda um alerta quanto à insegurança alimentar nos lares chefiados por essas mulheres e que têm crianças menores de dez anos. Mais de 23% conviviam com IA grave. “Já o percentual de domicílios chefiados por mulheres negras com menores de 10 anos e em condição de SA (21,3%) chegou à metade do encontrado em lares chefiados por homens brancos (52,5%) e quase a metade do percentual encontrado em domicílios chefiados por mulheres brancas (39,5%).”
Catia Maia ressalta que o Brasil viveu anos de desmonte das políticas sociais nos anos do governo de Jair Bolsonaro (PL), que precisam ser retomadas urgentemente.
“Resolver a fome tem solução. O Brasil tinha resolvido isso nos anos 2010, quando saiu do mapa da fome das Nações Unidas. Isso foi uma vitória da população brasileira, dos movimentos sociais que produzem nosso alimento e das políticas públicas. Porque é preciso providenciar na emergência o que aquela família vai comer, mas é preciso também pensar em uma sustentação.”
Segundo Rosana Sales Costa o momento é de reabrir o diálogo. “Ano passado nós perdemos muito tempo tendo que defender e provar os dados do nosso relatório. No cenário atual, colocamos o dia 28 de fevereiro como um grande marco, quando foi retomado o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Agora, esperamos que com esse relatório, que será apresentado em momento oportuno ao governo, nossos pares possam olhar esse relatório, conversar, pensar e reestruturar algumas das políticas sociais que estejam estruturalmente relacionadas ao racismo ao sexismo, para tentarmos, de fato, reverter esse quadro.”
O VIGISAN é uma realização da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), com dados obtidos pelo Instituto Vox Populi. A iniciativa tem apoio das organizações Ação da Cidadania, ActionAid, Ford Foundation, Fundação Friedrich Ebert Brasil, Ibirapitanga, Oxfam Brasil e Sesc São Paulo.
Foram realizadas entrevistas em 12.745 domicílios, em áreas urbanas e rurais de 577 municípios, nos 26 estados e no Distrito Federal.
Originalmente publicado em Brasil de Fato
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