Publicado originalmente na Ponte Jornalismo
Por Arthur Stabile
Fotos obtidas pela Ponte identificam que PMs mexeram no corpo de Bruno Gomes Simon Fuentes, 23 anos, morto em ação policial no dia 10 de novembro, em Diadema, cidade no ABC Paulista. Peritos e policial da reserva entendem o ato como fora do comum.
Bruno levou um disparo no pescoço e, segundo sua família, morreu no momento em que caiu na esquina das ruas Pedro José de Rezende e Maria Helena, no bairro Jardim Piraporinha. Ali, ele teria sofrido um acidente enquanto fugia dos policias e sido atingido.
A versão do PM Leandro Queiroz de Lima é de que o rapaz fugiu de uma abordagem e, quando caiu com sua moto, tentou roubar a arma do policial. Durante a luta, a pistola, da marca Taurus, teria atirado sozinha.
As fotos obtidas pela Ponte (há um borrão onde aparece o sangue de Bruno, por serem imagens fortes) mostram Bruno caído na calçada. Em uma delas, o rapaz está caído de lado para o chão e há três PMs o olhando, todos de pé. Em outra imagem, o corpo está caído de costas para a calçada, enquanto dois PMs estão agachados e há um socorrista do Samu ao lado, em pé.
Nesta segunda imagem, um dos policiais que abaixa próximo a Bruno mexe no braço esquerdo do rapaz. Nenhuma dessas ações, seja dos PMs mexendo no corpo, seja da presença do Samu, consta no documento sobre o caso.
O boletim de ocorrência registrado no 3º DP de Diadema não informa nenhum tipo de socorro prestado pelo Estado ao motoqueiro. Há um trecho que trata do disparo feito pelo PM Leandro.
No documento, o policial detalha sua versão e, após dizer que atingiu Bruno na região do pescoço, Leandro alega que “durante a luta sofreu ferimentos no braço direito e no joelho”. Não há relato sobre primeiros socorros prestados pelos PMs, acionamento do Samu ou o próprio atendimento do socorro ao rapaz.
A família do entregador questiona a versão oficial. Segundo eles, a polícia mexeu no corpo para bater com a história de Leandro. “O corpo dele caiu na faixa de pedestres, no meio da rua. Os policiais mexeram e colocaram na calçada. As fotos mostram que eles mexeram”, diz o tio de Bruno, Anselmo Simon Fuentes, após protesto pela morte do rapaz. GCMs atacaram manifestantes e a imprensa durante o ato.
Comandante do 24º BPM/M, o tenente-coronel Vlamir Luz Machado explica que está ciente das fotos e que as imagens estão sob investigação no batalhão. Segundo ele, os policiais explicaram que, naquela cena, eles estariam tentando usar a mão do jovem para desbloquear o celular por meio da digital.
“O que chegamos à conclusão, o que não se dá por encerrado [o processo de investigação] pois vou atrás de provas materiais, é de que eles estavam tentando fazer naquele momento: não é uma arma, é o celular do rapaz. Estavam tentando desbloquear para ter acesso à alguém da família”, justifica Machado à Ponte.
Segundo o comandante do batalhão, os PMs identificaram a pessoa responsável pela foto. “Identificar o autor das fotos, pedi para o serviço de inteligência tentar localizá-lo. Realmente, ele afirma que tirou as foto e mais nada, não viu arma, só estava tirando as fotos. Não percebeu nada. As coisas estão caminhando”, explica.
A Ponte mostrou as imagens para dois peritos e um policial militar da reserva. Em comum, eles apontam que não faz parte do protocolo que policiais mexam no corpo de uma pessoa baleada. Caso ela esteja morta, isto deve ser feito apelas por peritos da Polícia Civil.
Adilson Paes de Souza, tenente-coronel aposentado da PM paulista e doutor em psicologia, explica que os PMs quebraram regras na ocorrência. “Pela resolução [nº 40/2015 da Secretaria da Segurança Pública de SP], não pode mexer [no corpo]. O PM isola o local, chama socorro, que é o Samu”, detalha. “Qualquer movimento, mexida no corpo, pode violar o local do crime e atrapalhar eventual apuração”, explica.
Autor do estudo “O policial que mata: um estudo sobre a letalidade praticada por policiais militares do Estado de São Paulo”, o tenente-coronel diz que o contato com o corpo cria a “possibilidade de violar o local do crime e prejudicar qualquer inciativa ou tipo de investigação”. “Nesse sentido, policiais não poderiam ter mexido no corpo”, finaliza Adilson.
A mesma atitude é vista com estranhamento por Marcos Camargo, presidente da APCF (Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais). “O que a lei determina, em casos como esse, é que seja acionado o órgão de perícia criminal oficial para que o local do ocorrido venha a ser examinado”, diz.
Na perícia, explica Camargo, seria possível identificar se a arma do PM é a mesma do tiro que o matou. Também possibilitaria extrair possíveis digitais do rapaz, o que bateria com a versão do PM Leandro.
O profissional minimiza que a possível mudança na cena do crime possa dificultar tanto a investigação, apontando que análises do local, identificação de projéteis, cartuchos, manchas de sangue e outros elementos podem ser usados para reconstruir a situação. “Cada caso tem suas particularidades que precisam ser levadas em conta para que a perícia criminal possa fazer esse exame, sem prejuízo de relatar que o local tivesse sido desfeito”, pondera.
O perito particular Eduardo Llanos, diretor do Secrim Swell Criminalística, fez uma análise preliminar. Nela, considera “incompatível” o local onde o corpo se encontra com um acidente de moto.
Conforme as imagens do corpo caído, Llanos considera um “procedimento incomum” o PM agachar ao lado do corpo. Ao aproximar a imagem, avalia que o policial segura na mão esquerda do rapaz “um objeto com caraterísticas semelhantes a uma arma de fogo, especificamente uma pistola”.
O profissional não vê justificativa para um policial mexer no corpo enquanto há a presença de um profissional do Samu no local “uma vez que o local e a vítima, devem ser preservados com a finalidade da polícia judiciária e a perícia possam determinar a dinâmica do evento, amparados nos elementos que o local apresenta”. Segundo ele, não houve nenhum tipo de isolamento ou preservação do local por parte da PM.
O perito analisou gotas de sangue em fotos tiradas da moto dirigida pelo entregador. Pelo posicionamento, considera que a vítima “precisaria estar perto ou sobre a moto no momento de ser atingida”.
Indica que é necessária uma perícia da trajetória do disparo para identificar distância e posicionamento de Bruno quando atingido. E cobra uma perícia residuográfica para identificar “tatuagem”, marca na pele produto de um tiro a curta distância. Caso haja a tatuagem, ela corroboraria com a versão do PM Leandro.
Conselheiro do Condepe, o advogado Ariel de Castro Alves avalia que há casos em que PM usam álibi de luta corporal para justificar possíveis mortes. Segundo ele, isto ocorre em muitas ocorrências nas quais os policiais “não conseguem forjar situações de confronto plantando armas irregulares em poder das vítimas”.