Por Maria Paula Carvalho
Em seu discurso de política geral, um pronunciamento que o premiê francês faz tradicionalmente na Assembleia Nacional para dar o rumo e listar as prioridades de seu governo, a primeira-ministra Élisabeth Borne convocou os deputados a “construírem juntos” as soluções necessárias para responder aos desafios econômicos e climáticos. Ela também defendeu a nacionalização do setor da energia e disse que o país não pode depender do gás e do petróleo russos.
Em 1h e 25 minutos de discurso, Borne reforçou que “desordem e instabilidade não são uma opção” para a França, após o governo ter perdido a maioria absoluta no Parlamento nas eleições legislativas de junho. “Pelo resultado das urnas, os eleitores estão nos pedindo para agirmos de forma diferente. Por meio dessa mensagem, [eles] estão nos pedindo para assumirmos coletivamente nossas responsabilidades”, disse.
Élisabeth Borne destacou a “urgência e a necessidade de ações”, no momento em que a “guerra perdura e a situação econômica se degrada, com taxas de juros aumentando”. De acordo com as palavras da primeira-ministra, “os franceses nos pedem para conversarmos mais e atuarmos juntos”, declaração que foi seguida de aplausos pelos deputados que apoiam o presidente Emmanuel Macron e vaias da oposição. “É preciso dar um novo sentido à palavra concessão, esquecida na nossa vida política”, insistiu, lembrando da necessidade de negociações entre os membros da Assembleia. Porém, “trabalhar juntos não significa abrir mão de ideias próprias”, alertou, acrescentando que os deputados “não poderiam decepcionar” a sociedade.
Em linhas gerais, Élisabeth Borne propõe uma “França mais forte, numa Europa independente, com igualdade entre homens e mulheres e respeito à laicidade”. Prometendo ser incansável no cargo, ela disse que “uma nova página da história começa”.
“Talvez eu não corresponda ao que muitos esperavam de mim”, disse, deixando de lado, por alguns momentos, “a armadura” e externando sentimentos. “Não tenho complexo de ser mulher. Fui engenheira, ministra e meu objetivo é servir”, afirmou, agradecendo à França pelas oportunidades que teve. “Devo tudo à República, foi ela que me estendeu a mão e me deu um trabalho. É ela que me guia e quero devolver um pouco do que recebi”, afirmou.
Durante toda a sua fala, a primeira-ministra estendeu a mão aos opositores e se mostrou aberta para desenvolverem juntos as soluções aos desafios futuros, mostrando disposição a “escutar as preocupações dos diferentes grupos” e mesmo a “aceitar mudanças nos seus projetos”, de acordo com os debates.
Tripla responsabilidade: ambiental, orçamental e fiscal
O primeiro desafio, disse ela, é responder à urgência do poder aquisitivo, citando várias medidas já tomadas para proteger os franceses da inflação. “O aumento do preço da energia deveria ter sido de um terço, mas não passou de 4%”, destacou, lembrando, ainda, o bloqueio dos preços do gás, medida que ela pretende estender. “Graças a isso, a inflação na França é a mais baixa da zona do euro”, disse.
Ela também prometeu “um teto para o aumento dos preços dos aluguéis” e a “ajudar os franceses que dependem do carro para viver”. Outros pontos citados foram “garantia de alimentação de qualidade, fim da injustiça social e luta contra a fraude”.
Transição energética
Ao abordar a necessidade de alcançar o “pleno emprego”, Borne lembrou que o “crescimento econômico deve estar ligado à transição ecológica” e à “responsabilidade ambiental”. A primeira-ministra comemorou a “taxa mais baixa do desemprego no país em 15 anos, e em 40 anos entre os jovens”, destacando o “investimento de €15 bilhões na formação profissional para criar os empregos do futuro”. “Paramos com 40 anos de desindustrialização e vamos acelerar ainda mais para atrair empresas e indústrias, baixando impostos sobre a produção”, completou.
Élisabeth Borne destacou que seu governo será regido pela “planificação ecológica”, com o objetivo de “atingir a meta europeia de baixar as emissões de carbono, alcançando neutralidade em carbono em 2050 para vencer a batalha do clima”. Ela anunciou uma grande consulta, a partir de setembro, com participação dos prefeitos e políticos locais para definir objetivos em termos de redução de emissões de gases de efeito estufa. “A França será a primeira grande nação desenvolvida a sair das energias fósseis”, disse, destacando “urgência de o país não depender do gás e do petróleo russos” e de “alcançar soberania energética”. Para isso, o novo governo pretende investir num misto de energias renováveis e novos reatores nucleares.
Nacionalização da energia
Borne ainda divulgou a intensão do Estado em deter “100% do capital da EDF”, a maior empresa produtora e distribuidora de energia da França. Fundada em 1946 após um programa de nacionalização, a companhia estatal adotou, a partir de 2004, uma personalidade jurídica de direito privado, da qual o Estado detém, atualmente, 84%.
A primeira-ministra ainda prometeu trabalhar para a popularização de carros elétricos, descarbonizar a indústria e a agricultura e promover mudanças no padrão de consumo dos franceses para “acabar com a era do desperdício”.
A chefe do governo alertou que “melhorar as contas públicas será determinante para poder manter o Estado de bem-estar social francês”. Segundo ela, “em 2026, devemos começar a baixar a dívida e, em 2027, diminuir o déficit público a 3%”. Em seguida, a primeira-ministra disse que desconsiderava “qualquer a aumento de impostos” para financiar o governo.
Reforma da aposentadoria
A primeira-ministra defendeu a reforma das aposentadorias, um objetivo do presidente Emmanuel Macron, que enfrenta forte resistência. “Para a prosperidade do país, para o progresso social e para que ninguém tenha uma aposentadoria inferior a €1.500, devemos trabalhar um pouco mais tempo”, disse, recebendo aplausos dos deputados centristas e vaias dos deputados da esquerda. “Sim, vamos ter que trabalhar um pouco mais, progressivamente”, insistiu, sem dar mais detalhes.
Borne citou, ainda, a supressão dos valores pagos pelos franceses para custear os serviços de audiovisual do país, prometendo uma reforma no setor que, segundo ela, “vai aliviar as despesas de cada domicílio e garantir um audiovisual público financiado de maneira perene e independente”.
Parte do discurso foi dedicado às reformas nas escolas, valorização de professores e obrigatoriedade de 30 minutos de esporte por dia para os alunos. O governo prometeu, também, ajudar os pais que criam filhos sozinhos (até 12 anos) e a organizar a oferta de creches, reclamação constante dos pais que trabalham.
Combater a falta de médicos
Na área da saúde, Élisabeth Borne disse que o foco será na prevenção de doenças e em apoiar categorias como médicos e enfermeiros. Nessa hora, os aplausos da maioria dos deputados rivalizaram com gritos de “hipócrita!” vindos do lado da coalizão de esquerda Nupes. “Não aceitamos essas manifestações no plenário”, lançou a presidente da Assembleia, Yaël Braun-Pivet.
A primeira-ministra também assegurou que o governo atuaria a favor da “autonomia das pessoas com deficiência” e da “transformação das estruturas médico-sociais” e que uma conferência nacional sobre o assunto deve ser organizada no início de 2023.
Radicalismo islâmico
Por fim, a primeira-ministra da França disse que “liberdade, igualdade, fraternidade e laicidade não são negociáveis”. De acordo com ela, “a laicidade é um pilar do pacto republicado”. Borne prometeu “combater o radicalismo, o separatismo e o islamismo”.
Ela concluiu o discurso dizendo que “confiança não se decreta, mas se faz texto a texto, projeto a projeto”. Em uma mensagem para a oposição, disse: “Devemos sempre nos perguntar se queremos bloquear ou construir? Assim seremos julgados”, finalizou, dizendo estar confiante que “a França é o país onde tudo é possível, que supera crises e recusa a fatalidade”.
Moção de censura
Meia hora antes de Borne tomar a palavra, a aliança de esquerda Nupes apresentou ao Parlamento uma moção de censura, rebatizada de “moção de desconfiança”. O texto só deve ser debatido na sexta-feira (8) ou, possivelmente, no início da próxima semana, com poucas chances de ser adotado, já que depende de maioria absoluta dos votos.
“Na falta de um voto de confiança”, que não foi solicitado pelo primeiro-ministro, “não temos outra escolha senão apresentar esta moção de desconfiança”, justificaram em seu texto os parlamentares da França Insubmissa, do Partido Socialista, dos ecologistas e comunistas aliados na coalizão Nupes.
(Texto originalmente publicado em RFI)
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