Nas eleições municipais de 2024, um curioso fenômeno chama atenção: a frase “Durante todo o mandato a realização dos objetivos almejados estará atrelada a valores como trabalho, transparência, responsabilidade, realismo, consistência, criatividade e, acima de tudo, planejamento” aparece de forma idêntica nas propostas de governo de 274 dos 15 mil candidatos a prefeito em todo o Brasil. O levantamento com uso de inteligência artificial que revela a pataquada é do G1.
O trecho é usado por representantes de 22 partidos – dos 29 que disputam as eleições – em 266 cidades de 25 estados, com algumas cidades tendo mais de um candidato utilizando o mesmo texto. Embora a repetição sugira a falta de originalidade nas propostas, especialistas e advogados eleitorais afirmam que a prática não configura crime eleitoral, uma vez que não há exigências formais sobre a exclusividade ou originalidade do conteúdo nas propostas de governo.
A legislação brasileira exige que candidatos a prefeito, governador e presidente registrem suas propostas junto à Justiça Eleitoral, mas não estabelece regras rígidas quanto ao conteúdo. Segundo o advogado eleitoral Alberto Rollo, o plano de governo, muitas vezes, é genérico e não reflete necessariamente a atuação futura do candidato, mas sim o cumprimento formal de um requisito legal.
Emmanuel Publio Dias, especialista em marketing político, observa que a elaboração superficial desses documentos é uma consequência da pouca importância dada pelos candidatos e pelo eleitorado. “O plano de governo deveria ser o principal argumento para o voto, mas não é tratado assim”, ressalta o professor.
A frase, que remonta ao menos às eleições de 2016, quando foi utilizada por Ney Santos, então candidato a prefeito de Embu das Artes (SP), parece ser um modelo amplamente difundido por consultorias políticas. O professor Wilson Gomes, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), acredita que a repetição em grande escala reflete a falta de singularidade das campanhas e o uso de modelos prontos para a redação das propostas.
Em oito cidades, mais de um candidato a prefeito utiliza a frase “realismo, consistência, criatividade”. Em Nova Belém (MG), por exemplo, os dois candidatos – Lili Reis (União Brasil) e Valdeci Dornelas (PSD) – não só repetem a frase como também compartilham outros trechos idênticos em seus documentos, embora as promessas sejam diferentes. O mesmo se repete em Coribe (BA) e outras seis cidades.
Procurados para comentar a repetição, os partidos afirmaram que a responsabilidade pelas propostas é dos próprios candidatos. O MDB, PSD e PSDB destacaram que fornecem material de consulta, mas reforçaram que cada campanha é autônoma na elaboração de seu plano de governo.
A descoberta da frase foi feita por meio de ferramentas de inteligência artificial. O G1 submeteu 62 propostas de governo – com um total de 669 páginas – para análise, localizando o trecho repetido em 274 documentos entre os mais de 15 mil registrados no site de divulgação de candidaturas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
A questão levanta reflexões sobre a personalização dos planos de governo e a importância de propostas genuinamente voltadas às necessidades locais. Embora a prática não seja ilegal, reforça a percepção de que muitas candidaturas ainda enfrentam desafios para se diferenciar e apresentar soluções autênticas para suas comunidades.
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