Funcionários da Prefeitura de Covas tomam objetos até de cadeirante, dizem vítimas

Atualizado em 15 de outubro de 2020 às 18:34
Senhor cadeirante perdeu barraca doada no mesmo dia | Foto: Arquivo/Ponte

Publicado originalmente no site Ponte Jornalismo

POR ARTHUR STABILE

Pessoas em situação de rua denunciam terem sido alvo de ação da Prefeitura de São Paulo na manhã desta terça-feira (13/10). Por volta de 9h, na Luz, no centro da capital paulista, tiveram seus pertences recolhidos, entre eles barracas, comida e até documentos.

Em vídeos, as pessoas detalham como perderam seus itens na Praça Princesa Isabel. “Estávamos aqui e o ‘rapa’ chegou batendo na gente. Leva barraca, alimentação… Temos que brigar para que não levem”, descreve um dos homens ao relatar a ação.

Parte dos materiais havia sido entregue como doações da Rede Rua e do padre Julio Lancellotti no começo do dia. Quem saiu prejudicado conta ter visto idosos e cadeirantes serem afetados pela tomada das barracas.

Uma das pessoas fez apelo pedindo o fim das doações, com medo serem mais uma vez alvo do ‘rapa’ (como é chamada a limpeza feita pela Prefeitura). “Para ajudar a gente, que recebemos doações direto… Está atrapalhando, de verdade. Não fazemos bagunça, limpamos o espaço e levam o documento das pessoas”, se revolta Felipe Augusto dos Santos, 30 anos.

Idosos que perderam suas barracas também reclamam e cobram providências do prefeito Bruno Covas (PSDB). “Nós somos da rua, somos pessoas, não lixo. Tem que ter limite. Nós dormimos agora sem nada. Que prefeito é esse? Isso é prefeito?”, questiona dona Marinalva Silva, de 64 anos.

O médico Flávio Falcone, atuante na área junto aos moradores em situação de rua e também aos dependentes químicos que frequentam a região da Luz, gravou os relatos em vídeo.

Ele denuncia que o governo Covas descumpre o decreto nº 59.246 de 2020 ao tirar itens das pessoas. O texto trata da zeladoria urbana feita por funcionários da prefeitura e, em seu artigo 10, diz que deve “respeitar os bens das pessoas”, entre os quais documentos, comida e barracas.

“É um absurdo completo. São pessoas que moravam no Atende 2, foram para a praça por conta do atendimento”, diz, citando serviço social retirado da população da Luz durante a pandemia do coronavírus, em abril deste ano, conforme denunciado pela Ponte.

Falcone alerta para a crescente repressão à população de rua desde o início de setembro, quando candidatos à Prefeitura e Câmara Municipal de São Paulo fizeram lives e colocaram a Luz como centro de sua campanha.

Desde o início do mês passado ações truculentas por parte da GCM (Guarda Civil Metropolitana) têm sido recorrentes. Há casos de agressões, com três guardas chutando um homem, e de detenção por “difamação”, como ocorrido com o Pastor do Pão, homem distribui pão e água no fluxo.

O período recente também contou com episódios insólitos como o dia em que policiais no Denarc entraram no fluxo para resgatar um ex-policial civil esfaqueado. A Ponte descreveu como aconteceu a ação dos policiais, que deixaram a Penha, bairro na zona leste da capital paulista, para ir até o centro prestar socorro.

A antropóloga Roberta Marcondes, que integra o coletivo Craco Resiste, responsável por atuar junto aos dependentes químicos e população de rua da Luz, critica o uso político da questão social no ambiente.

“Nem em ano eleitoral, que os políticos acham importante tratar as pessoas como pessoas, estão conseguindo segurar essas políticas violentas que estão descumprindo leis ao tirar pertences das pessoas”, analisa.

Ela explica que a carroça é um meio da pessoa conseguir o seu sustento e usa fala de um dos homens gravados por Falcone, em que o morador de rua diz “você preferia que estivesse roubando, prefeito?”.

“Se gasta milhões e milhões para violentar essa pessoa e retirar uma barraca que um poder público, em outra extremidade, tinha pago pra ela”, explica.

Roberta reforça existir um impacto negativo nas ações que, em vez de solucionar o problema, na verdade o piora. “Isso não vai acabar com o uso de crack. Vai deixar a pessoa mais puta e a fará fumar mais pedra. O uso tem a ver com violência social”, afirma.

A Ponte questionou a Prefeitura de São Paulo sobre a ação dos funcionários do rapa nesta manhã na Praça Princesa Isabel. Segundo o governo municipal, a GCM esteve no local em apoio, mas o trabalho foi feito pelos agentes de zeladoria. Garante que a guarda está “orientada a não retirar nenhum pertence dos moradores de rua”. Com isso, respeita o decreto nº 59.246/20.

“Podem ser recolhidos objetos que caracterizem estabelecimento permanente em local público, principalmente quando impedirem a livre circulação de pedestres e veículos, tais como camas, sofás, colchões e barracas montadas ou outros bens duráveis que não se caracterizem como de uso pessoal”, sustenta a Prefeitura, dizendo que denúncias podem ser feitas pelo portal 156 ou encaminhadas à Corregedoria da Guarda Civil Metropolitana.

Atualização às 10h15 de quarta-feira (14/10) para incluir posicionamento da Prefeitura de São Paulo.